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  • Entrevista com Larissa Gomes – autora de Cidadolls

    1- Com certeza você é uma das autoras mais promissoras que nosso atual mercado editorial nos apresentou. Como você definiria a escritora: Larissa Gomes?
    LG - Bem, definiria como uma fuga do óbvio e ir além do realismo. Puxando a imaginação, em imagens que surgem por músicas e sonhos.
    2- As editoras independentes tem mostrado como se publica livro em tempos de crise econômica. Essa crise é sentida nos autores independentes de que forma?
    LG - A crise é sentida de uma forma forte e triste, principalmente na área literária. Não é grande a população brasileira que é ligada à leitura e ultimamente a venda de livros tanto físicos quanto virtuais teve queda.
    3- Como a crise das grandes livrarias afeta as pequenas editoras e plataformas de publicação alternativas no seu ponto de vista?
    LG - As livrarias muitas vezes costumam adquirir livros de inúmeras editoras para o catálogo, porém com a crise elas costumam priorizar editoras de nome maior no mercado.
    4- Qual a maior dificuldade de se trabalhar em um romance do gênero terror?
    LG - O terror, por ser um gênero que instiga o imaginário em várias formas e aumenta a visão dos horrores do consciente, pode ser um desafio para escrever. O cuidado é para não ultrapassar o desconforto em um nível que deixa de ser apenas a adrenalina de uma boa trama.
    5- Todo escritor tem um acervo básico de referências na cachola. Se você tivesse que citar suas maiores influências, quais seriam e porquê?
    LG - Minhas maiores referências vão desde escritores há diretores de cinema. Mencionarei dois aqui, que inspiram minhas horas: Edgar Allan Poe e Tim Burton. Ambos, apesar de universos diferentes trazem o ar gótico e estilo excêntrico que amo me inspirar nas obras.
    6- Seu livro une terror e steampunk, um pouco de fantasia, bonecas e tem até um escritor como protagonista! Como é que você uniu tantos elementos diversos e formou a trama do livro Cidadolls?
    LG - O livro traz as referências que coleto na minha vida, além dos toques de surrealismo vindos de meus sonhos. As imagens da trama vêem com músicas e estímulos externos, se formando em um universo novo misturando estilos.
    7- Pergunta indiscreta: existe bloqueio criativo ou falta de gestão de tempo?
    LG - Bloqueio criativo, creio que sempre tem. Em um momento, a história trava e chego a pensar que não vai ir mais. No entanto, quando deixamos a mente descansar tudo retorna bem.
    8- Como um autor independente faz para brigar por um espaço ao sol com os livros estrangeiros de autores já consagrados?
    LG - Divulgando. Creio que divulgando bastante e tentando ampliar os locais onde sua história é ouvida, pode trazer mais espaço e um reconhecimento que se aproxime do que esperamos para a arte que fazemos.
    9 – Uma autora prolífica como você deve estar produzindo algo aí, nos conte tudo e não esconda nada! Quais os planos para o futuro?
    LG - Estou escrevendo ultimamente a continuidade da saga Cidadolls, além de um livro de fantasia que pretendo seguir adiante.
    10 – Qual lembrete a autora gostaria de deixar para os seus leitores?
    LG – O que eu peço para eles, é apenas uma coisa: Nunca esquecer a imaginação. Creio que, deixar-se imaginar é uma porta para mundos incríveis e viagens que a realidade pode estar longe de proporcionar.
    Deixe abaixo links e endereços para que os leitores possam visitar:
    Instagram  — @larissaactress, @ditebowery
    Mais informação do livro na bio do Instagram @editoraimmortal.
    https://www.facebook.com/EditoraImmortal/
    https://www.clubedeautores.com.br/livro/cidadolls#.XP_CFdJKgfc
    https://www.amazon.com.br/Cidadolls-Larissa-Gomes-ebook/dp/B07L2LMY7W
  • Febre

    Aquela região seca não encanta ninguém a um olhar de relance. Mas, obrigados, eu e Edgar, a pararmos devidos alguns problemas no veículo, contemplamos a água que ao cair do céu, não molhava o chão. Tocávamos os galhos retorcidos para comprovarmos se estavam molhados, mas não.  A água escorria, mas a areia continuava seca.  Segundos antes, se soubéssemos daquele raro fenômeno, não teríamos passado horas em vão dentro do carro, visto que a chuva, estranhamente, também não nos encharcava.
    Fez-se noite. Sinto, repentinamente, minhas costas deitadas em algo macio.  Um homem, cuja brancura da roupa ofusca meus olhos, emerge da escuridão. Aproxima-se de meu amigo e pergunta-lhe o porquê de estarmos aqui. Edgar, calmamente, responde problemas mecânicos. Vejo a lataria do carro deformar-se. Edgar também, contudo, nada demonstra. Outro vulto áureo surge da escuridão, aproxima-se de mim. Não vejo mais Edgar. Ele toca-me. Meus olhos estão sangrando agora. O vidro do carro estilhaça-se. Não sinto mais o meu próprio corpo. Ele pergunta-me algo, entretanto, não compreendo o que diz.
    Depois, uma multidão de vultos emerge da escuridão. Um caminha em direção a uma criança, antes ignorada pelos meus olhos. O carro capota, vê-se indício de fogo. O homem, brutalmente, arranca dos braços da menina morta uma boneca. Depositando o cadáver no saco preto, priva-a dos cuidados de sua pequena mãe.
    A chuva continua, os vultos estão molhados. Subitamente, vejo inúmeros outros carros parados, outros capotados. O carro de Edgar não mais existe, o fogo já o devorou. Meu coração não mais bate. Acordo, tudo está escuro. Levanto-me à procura de luz. Apesar de uma singela tontura, encontro-a. Ao acendê-la, deparo-me com os corpos de Edgar e da menina. Eu não estava morto. Recordava-me do acidente. Chovia. Abri a janela. Toquei na água que escorria, minha pele permaneceu seca. Escuto alguém bramando lá do fundo do corredor, caminho na sua direção. Mas, à medida que buscava aquela voz, meu corpo desfazia-se, ela, mais intensa, rachava as paredes do local. As paredes precipitam-se. Sou soterrado. Escuridão. Acordo. De relance, contemplo minha mãe, da porta do quarto, gritando a fim de que eu, ainda que argumentando não poder levantar-me em decorrência de relevos de febre, acordasse mais cedo e não perdesse o horário da escola.
  • FELICIDADE NA DOR: PARTE 1

    Flávio estava deitado no sofá de casa assistindo uma partida de futebol. Seu time em noite inspirada vencia e convencia. Em dado momento a campainha tocou, aborrecido por desgrudar os olhos do jogo foi atender. Era a sogra Carmen, alinhara com Julia de lhe aguardar pós trabalho. O casal havia se mudado a pouco e a moça aceitou a ajuda da mãe para arrumar alguns objetos. Notou de imediato o clima festivo, pois seus olhos brilhavam eufóricos, a recepcionou com um abraço e não querendo  incomodar tratou de ir para a cozinha.  As tarefas pareciam óbvias afinal eram copos, talheres dentre outros utensílios necessitando de arrumação.

    Eram vinte e duas horas e trinta minutos, enquanto organizava as coisas Carmen ouvia os gritos do genro alucinado.  A vizinhança colaborava afinal o time era popular na cidade. A exibição de gala merecia gritos, xingamentos e toda espécie de desabafo. Talvez aquela não fosse a ocasião propícia, olhou para a bolsa trazida a tira colo e buscava decidir se faria ou não aquilo. Os pensamentos a levaram, momentos inesquecíveis e não teria volta.

    O time fez mais um gol, necessário para classificar a próxima etapa do torneio. Eram fogos de artificio, buzinas de carro e todo tipo de som para comemorar. Flávio embalado seguia em puro êxtase e a rouquidão tomou conta. Carmen a cada explosão sentia o corpo flamejar, as mãos tremulas, suor e mente desgovernada. Foi quando levantou da cadeira, pegou a bolsa e foi até a sala. A aproximação foi notada e ao virar-se percebeu a sogra tirando algo, era uma arma calibre trinta e oito. Foi tudo muito rápido e quando menos esperou já havia recebido três tiros no peito. A atiradora chegou perto e observara o corpo estirado. Ele sussurrava por socorro, o medo estampado no olhar enquanto dava os últimos respiros.  E a sogra ali, com certo prazer, feliz, mesmo observando dor.

    CONTINUA...
  • Ficar fugindo dos problemas

    Ficar fugindo dos problemas pelo resto da vida,e a mesma coisa que tenta acabar um incêndio jogando gasolina, nunca aquela situação ira parar
  • Hinderman - Capítulo 4

    Continuação dos capítulos anteriores.
    Para ler os capítulos anteriores acesse: https://autores.com.br/component/search/?searchword=hinderman&searchphrase=all&Itemid=9999

     O Verde era mais novo que eu.
     Ele podia se vestir mais profissionalmente. Por exemplo, ali ele usava uma peça escura, quase preta, mas dava para ver que era verde se chegasse perto. Acho que era tipo um black-tie só que menos formal. Ele podia também ser o chefe do negócio. Ele podia ser mais sofisticado com suas palavras e atitudes, mas chegando perto dava para ver que era bem mais verde do que o maduro que queria passar a impressão que era.
    O Verde certamente era mais novo do que eu.
    Nós estávamos no esconderijo.
    Tá... Não era bem um esconderijo. Era apenas um local combinado. Um dos clientes do chefe era o dono do local. Um desses barzinhos que servem comida boa a preço de banana para fazer lavagem de dinheiro. O ambiente era escuro e um pouco claustrofóbico. Naquele horário estava cheio... De mesas vazias.
    Só estávamos nós quatro ali.
    Eu, o Gary e o Boe tínhamos sido todos convidados, mas aquele momento em específico fui só eu que acabei presenciando. Os outros dois estavam de pé ao balcão, uns dez metros mais para trás, discutindo qualquer outra coisa. Era o momento após a conversa inicial, quando todos já tinham terminado de trocar as informações sobre os casos. O chefe estava sem nada para fazer então me convidou para um jogo de xadrez. Os dois não jogavam, de forma que ficamos só eu e ele na mesa.
     - Mas por essa eu não esperava, senhor... Um alien saltando por entre as casas de Little Quarry e deixando vítimas à vista?
     - É o que aconteceu, Spikey. E você sabe... Vocês três sabem... Não só é trabalho da polícia, mas também nosso acobertar a existência de criatu... De pessoas talentosas como vocês. Afinal se todos souberem de vosso talento nosso trabalho fica muito mais difícil, não é mesmo? – O chefe fez um lance no tabuleiro. Estávamos apenas no início do jogo.
    - E o senhor tem certeza que não quer que encontremos o... O Alien?
     - Não será preciso, Spikey... Tenho razões para acreditar que ele não queria chamar atenção embora tenha chamado bastante. Na verdade... – Ele olhou de relance para os outros dois perto do balcão – Na verdade... Acredito que ele deve estar trabalhando para a “terceira parte”.
     O chefe se referia à terceira parte qualquer um que pertencesse ou que fosse empregado pelo Dragão ou por Wilkinson. Isso porque as gangues principais que restaram no que diz respeito ao negócio dos Deluxes são três: nós, o Dragão e o Wilkinson. Três partes. E quando não somos nós responsáveis por alguma coisa, então é a terceira parte, ou seja, a concorrência.
     - E o senhor... Baseia isso no fato de aquele envelope ter sido roubado?
     - Exatamente. – O chefe fez mais um lance estranho, atacando meu lado do rei sem se preocupar em defender o bispo previamente atacado.
     Os lances dele eram do tipo difícil de lidar. Ele esquece a defesa e parte para o ataque. É preciso jogar com muita precisão para sair bem sucedido neste tipo de jogo.
    O chefe prosseguiu:
     - Exatamente... E justamente por isso preciso que vocês três se concentrem no envelope e não no dono. Se ele trabalha para a terceira parte e perdeu o envelope ele já perdeu a missão. Agora quem pegar é dele.
     Ainda estava pensando no meu lance. Deixei escapar um pensamento:
     - Mas não entendo como um envelope pode ser tão importante assim... Quer dizer...
    O chefe inclinou a cabeça e me fitou mais sisudamente que o normal.
    Eu ia dizer que quase parecia que ele sabia de antemão o que tinha no envelope, e por isso sabia que era importante. Mas percebi que era algo muito direto de se dizer para o chefe.
     - Quer dizer...?
     - Er... Nada senhor. Estava pensando... O senhor tem uma ideia do que tenha dentro do envelope? Digo... Por fazer tamanho caso do acontecimento...?
     - O que há, Spikey? Perdeu a iniciativa? Está demorando demais nesse lance. – Ele se inclinou para trás, apoiando-se no encosto da cadeira. Parecia ter deliberadamente mudado de assunto. Não insisti na pergunta.
     - É... Eu não estou acostumado a jogar assim.
     - “Assim”... Meu estilo é o que chamam de jogador romântico, não é mesmo? Não romântico no sentido que inspire emoções amorosas, mas no sentido de que é o estilo jogado em 1840, na época do romanticismo.
     Confirmei com a cabeça e fiz meu lance.
     - E o seu estilo... Tem uma palavra para seu estilo de jogo também, não é mesmo? Como é que dizem? Um estilo “patzer”?
     Já que ele era o chefe podia falar esse tipo de coisa.
     Ele sacrificou mais um peão e retomou o assunto novamente:
     - Existe algo lhe incomodando, Spikey? Percebo que há uma falta de... “Comunicação”... Entre nós. Primeiro foi no telefone... O que foi aquilo sobre o Jeffrey? Aquela conversa sobre o emprego? Não é muito de você... De vocês três... Ficarem sobressaltados com a hipótese de uma troca de pessoal... Vocês sabem que tecnicamente vocês não fazem parte do pessoal, não?
     - Sim, senhor. Mas eu estava apenas... Apenas... -
     - Não me entenda mal, Spikey – Ele me interrompeu enquanto fazia seu lance – Eu gosto de vocês, na verdade gostaria de vocês no meu pessoal... Mas se há um motivo pelo qual vocês não fazem parte... Esse motivo veio de vocês mesmos, não?
     O Spikey-Gary-Boe se recusa a fazer parte de qualquer grupo após a saída do Canadá. Somos, com orgulho, mercenários independentes.
     - E agora mesmo fora de meu grupo, como contratados, estão me dizendo se eu devo escolher entre o mercador ou a mercadoria? O alien ou o papel? Parece um tanto incoerente, não?
    - De modo algum, senhor. Estava apenas perguntando...
    Sem me dar muita atenção, ele virou a cabeça para trás donde avistou o dono do bar, atrás do balcão conversando com o Gary e o Boe enquanto estes tomavam algum destilado. O dono do bar era amigo pessoal do cliente do chefe. O chefe chamou-o com um gesto.
     O amigo do cliente do chefe se aproximou. O chefe perguntou:
     - E então? Estão bebendo a essa hora já? Sobre o que estão conversando?
     O dono do bar respondeu apenas com um sorriso. Olhei na direção deles e eles estavam olhando para cá. Assim que o chefe e o dono do bar olharam eles desviaram o olhar.
     - Escute... Me traga um Martini seco, por favor?
     - Pode deixar. – Ele acenou e saiu.
     O chefe fez uma expressão despeitada com as sobrancelhas e enquanto pensava em seu lance volveu-se a mim novamente:
     - Do que eu estava falando, mesmo?
     O jogo já estava perdido. Meu rei estava encurralado no canto e quatro das peças dele estavam muito perto. Eu tinha duas peças menores e um peão a mais, mas todas estavam no canto do tabuleiro. Mesmo assim, ele ainda estava pensando muito naquela jogada.
     - Escute aqui, Spikey... Vou dizer uma coisa a você... As três partes... As três terceiras partes. Você sabe por que apesar do esforço da polícia elas ainda estão por aí? É porque não podemos fazer abuso do nosso... Do vosso talento. – Ele me olhou de soslaio – Você viu o que deu o abuso com o Jeffrey. Ele mal “nasceu” e teve uma vida curta.
     - Falando nisso... Será que ele não vai revelar nada sobre... “Os verdes”? Seria bom garantir que não?
     - Tenho razões para acreditar que ele não vai ter chance de soltar nenhuma informação... Mas deixando isso de lado, o que eu queria lhes dizer... Já que insistem em saber meus motivos... O motivo por que eu não quero fazer nada a respeito de Alexander Sprohic... O motivo pelo qual eu não quero nada com o Jeffrey agora que ele está preso... O motivo por que não quero capturar um alien à força... Se começamos a abusar muito do nosso... Do vosso talento... A polícia começa a ficar muito desconfiada e quando menos esperamos, puf! – Ele fez um gesto com a mão - A cor verde se esvai de Sproustown.
    Eu estava fazendo meus lances de maneira mecânica, já esperando a derrota irrefutável.
     - Existe um ritmo com o qual podemos fazer as coisas. E eu quero usar este ritmo agora, na captura do envelope. Seria bom capturar mesmo que um capanga de menor escala da “terceira parte”? Sim. Mas ainda mais importante é obtermos informações sobre as ações de Wilkinson ou do Dragão, não? Por isso quero me concentrar no envelope. Seria bom que pudéssemos nos vingar de Alexander Sprohic por ter nos deixado na mão? Sim. Mas ainda mais importante é presar pelo pessoal que temos agora, então é preciso economizar talento. Apenas usar o talento quando extremamente necessário.
     Ele não mencionou que foi ele próprio quem forçou Alex a perder o dinheiro, por isso não havia muito interesse por parte dele de receber o dinheiro de volta, mas claro que me refreei a mencionar esta parte.
    O chefe alcançou seu Martini da mão do dono do bar assim que este chegou, enquanto bebericava seu primeiro gole, concluiu:
     - Entende? É assim que trabalhamos, Spikey. A relação com a polícia é importante. Sem respeito à polícia não há respeito da parte da polícia.
    Aquela explicação, embora fizesse todo o sentido, não me revelava por que o chefe não largaria um alien para capturar um mero envelope se não tivesse certeza da importância do conteúdo. Mesmo assim, ainda com falta de umas informações, me dei por satisfeito. Afinal ele tinha razão: nada daquilo me dizia respeito.
    Eu teria desistido antes, mas deixei o chefe me dar o xeque-mate.
     - O xadrez parece até uma finesse sua, senhor. É realmente bom nisso.
     - Finesse?
     - Er... Nada não, senhor.
     Erro meu. Finesse é um termo usado entre nós, os seres “paranormais”. Eu não sei até onde os humanos conhecem os termos, logo é melhor falar disso o mínimo possível. O Verde, apesar de chefe de uma das “três partes”, cabeça de uma organização distribuidora de Deluxes em Sproustown, é um ser humano comum que coloca suas esperanças em aberrações contratadas como o Spikey-Gary-Boe. As outras duas partes não devem ser diferentes, afinal quem mais indicado que um ser paranormal para cuidar da sujeira desta linha de trabalho?
    Se um ser paranormal quisesse monopolizar o comércio ilegal de Deluxes em uma cidade pequena como Sproustown, provavelmente já teria conseguido, por causa das inúmeras vantagens que têm. Como ninguém monopolizava o comércio, ficava claro que os líderes eram humanos, e dependiam do esforço de criaturas como nós para alcançarem os objetivos que não conseguem por conta própria.
    Mas mesmo sabendo disso, olhando para aquele jovem imponente, usando aquela peça black-tie tão elegantemente e portando-se de maneira sutil embora hedionda... Há algo nele que o faz parecer muito mais impetuoso do que a fragilidade humana permite. Há algo que não me faz parar de pensar que daria um dos melhores seres paranormais se tivesse nascido como tal. Por isso, volta e meia, me pego cometendo gafes como essa, simplesmente supondo que ele conhece as verdades sobre o mundo paranormal.
    O chefe suspirou, reclinou-se no assento, com sua bebida em mãos, e passou a divagar sobre o seu negócio:
     - Alexander Sprohic hein...? Não posso negar que ele acabou roubando uma enorme quantidade de dinheiro... Pode acabar fazendo falta...
     E mesmo assim, ele nunca chegou a dizer que ele mesmo quem planejou o roubo.
     - Godfrey vai atrasar o pagamento, pois ele está com dificuldades na transação por causa do vereador...
     Ele estava com os olhos na lâmpada no teto. Deixava as frases no ar sem se dar o trabalho de terminá-las. De súbito voltou-se para mim e com entonação visivelmente mais resoluta emendou:
     - Mas isso não diz respeito a você, não é mesmo, Spikey..?
     - Er... Senhor...?
     - Haha! – O chefe bateu amigavelmente na mesa – Brincadeira, Spikey. Brincadeira. Eu vou deixar vocês três fazerem o seu trabalho. Não posso atrapalhar o trabalho dos peritos no assunto, não é mesmo? – Proferiu as últimas palavras demasiado pausadamente – Estou contando com vocês.
     Permaneceu me encarando, não sei se estava esperando eu me despedir ou dar uma resposta.
    Ainda havia algo me incomodando. Embora eu admita que o modo como o chefe se portava sempre me deixava desconcertado, eu não me deixava intimidar por ele ser um humano. Por isso, audaciosamente arrisquei uma última pergunta:
     - Senhor...
     - Pois não?
     - Agora à tarde o senhor nos chamou para conversar sobre esse envelope que havia caído do bolso de um fugitivo, que foi capturado pela polícia especial do DCAE.
     - Sim. E daí?
     - Não pude deixar de ouvir do Boe... Que o senhor havia também comentado com o... Com aquele gor.. Aquele senhor que estava aqui na semana passada...
     - Norman.
     - Isso. O senhor tinha comentado com o Norman... Que o Jeffrey havia sido derrotado com apenas um soco.
     O chefe apenas esperou-me completar meu pensamento.
     - Que mal lhe pergunte... Como fica sabendo tão certo o que se passa no interior do DCAE? Como recebeu informação tão detalhada como pistas encontradas na perícia ou quantidades de golpes trocadas em apreensões?
     Era uma pergunta audaz, mas eu não era do tipo de ficar inibido por um humano. Se eu estava curioso, perguntava. Podia ser o chefe da máfia, mas o máximo que ele ia fazer era não me responder.
    Poderia jurar que suas sobrancelhas se juntaram em uma expressão ligeiramente acirrada. Mas logo ele as transformou com seu afável sorriso:
     - Spikey... Esses são os contatos, meu caro. – Ele levantou-se da mesa após dar o último gole em sua bebida – Afinal, tudo é questão de boa política, sabe? Tudo é questão de boa política...
     Ele me ofereceu um aperto de mão e foi na direção do balcão, onde pôs-se a conversar com o dono do bar, que agora não estava mais tratando nada com o Gary e o Boe.
     Depois disso eu fui tomar uma brisa na área de fora do bar, embaixo do toldo, e lá estava também o Boe, fumando seus favoritos cigarros importados, Lights qualquer coisa.
     - E aí?
     Ele meneou com a cabeça. Puxei um assunto trivial:
     - E a patroa e a criança?
     - Estão em casa. Steve está na escola agora.
     - Ele está com quantos? Quinze você disse?
     - Dezesseis esse ano.
    Ficamos um momento olhando para a rua movimentada, de cima da varanda. O Boe perguntou:
     - E o chefe, Spikey? O que disse o chefe?
     - Como assim?
    O chefe não disse nada em especial, eu imaginei que foi uma pergunta retórica. Mas a entonação estava de uma maneira diferente, como se o Boe estivesse esperando que eu dissesse alguma coisa importante. Eu disse o que veio na minha mente, isto é, o que lembrei da conversa:
     - Ele apenas reforçou que devemos nos concentrar no tal envelope, e não no alien.
     - E também esquecer o irmão do Jeffrey...
     - E também esquecer o irmão do Jeffrey. – Concordei.
    Ele jogou o resto de seu cigarro sacada abaixo e me olhou diretamente pela primeira vez:
     - Ele estava olhando para gente. Ele disse alguma coisa?
     - Como assim?
     - Àquela hora que ele chamou o Alfred... Estava nos olhando com uma cara estranha.
     - É mesmo? Não percebi...
     - Olhe, Spikey... Se você fica muito amiguinho do chefe e nos passa para trás...
    Virei-me para ele com uma expressão insólita.
     - Por que eu faria isso, Boe? Você bem sabe que não quero nada com humanos. Só negócios.
    Houve um silêncio pequeno, por isso resolvi contar a parte em que o chefe me explicou o porquê da prioridade com que escolheu os casos. Resumi para o Boe como ele falou da relação com a polícia, de como ele esperava que o DCAE seria enfático com os verdes caso chamássemos muita atenção, como o chefe definiu que precisávamos usar nosso “talento” com responsabilidade, como o Jeffrey estava errado por ter agido como agiu na terça feira.
    O Boe ouviu tudo calmamente. Então concluiu:
     - Você viu? Isso indica que ele sabe o que tem dentro do envelope, não é?
     - É... Eu também acho isso. Não que o Spikey-Gary-Boe tenha algo a ver com isso, entretanto. Se ele não quiser falar nada sobre isso, então que não fale.
     - Mas Spikey... – O Boe me cutucou com o braço, mudando o tom da voz para um sussurro – Isso confirma o que eu te disse o outro dia, não? Ele sabe tudo o que acontece no DCAE.
    Não tinha como refutar. Eu estava achando que era exagero dele, mas parece que era isso mesmo.
     - O que significa... – Ele terminou a frase com entonação indagativa e reticente, como que esperando que eu a completasse, apontava o indicador na minha direção.
     - Significa o que?
     - Que tem um funcionário verde no DCAE. Não?
     Ele queria dizer: um espião. Um funcionário que trabalhava para os verdes.
     - Pode ser que seja... E daí?
     - E daí? – Ele deu um risinho – O que é isso, Spikey? Seu desinteresse por humanos é tão grande assim? Não gostaria de saber quem é?
    - Como assim..? Você sabe quem é?
    - Eu não. Mas eu gostaria de saber...
    - Por que?
    - Ora. Curiosidade... Esse fuxico de agentes infiltrados não te deixa curioso? Os fuxicos são o luxo da vida marginal alternativa.
    - E por que não pergunta para o chefe?
     O Boe me olhou com descrédito.
     - Nem tudo pode ser conseguido com uma conversa honesta, Spikey. Ainda mais quando se trata do Verde. Vejo que ultimamente Verde parece esconder bastante coisa de nós...
     Naquele momento Gary apareceu na porta e interrompeu-nos com um chamado, encerrando aquele assunto:
     - Amigos!
     Nós saímos do encosto da varanda e fomos na direção dele.
     - Vamos lá? Temos trabalho a fazer.
  • Iniciando o pecado

    Por sorte conheci Ângela.
    Era magra, um pouco alta, loura, seus cabelos caiam sobre seus ombros com leves ondulações, era branca, suas bochechas eram rosadas, seu nariz avermelhado e lábios finos com um tom bem claro.
    Era adoravelmente simpática, seu sorriso era bem quadrado, como se fosse uma dentadura. Estava no segundo ano de medicina. Só sabia falar sobre isso.
    Falava como o cheiro hospitalar era viciante. Contava curiosidades sobre o corpo humano. Explicava sobre as partes inúteis do corpo.
    Era engraçada.
    O clima ficou tenso quando começou a falar sobre seu ex. Um cara qualquer. Futuro advogado. Um babaca que queria que ela desistisse da faculdade.
    Eu não me importava com nada que ela dizia.
    Mas queria me importar. Seus olhos claros, verdes ou azuis. Não lembro. Eram tão bonitos, tinham um brilho. Como se a vida dela até aquele ponto fosse tudo perfeito. Mas não era.
    Há alguns meses sua irmã ficará paraplégica num acidente de carro. Algo que me fez sentir mais próximo dela, já que tínhamos isso em comum.
    Seu foco na área, era descobrir um meio de fazer sua irmã voltar a andar.
    Ela tinha fé, mesmo dizendo não acreditar em Deus. Diferente dela, eu tinha uma crença enorme no pai divino. Eu era o escolhido. O filho de Deus.
    Minha avó começou a me levar para a igreja após a morte da minha mãe. Dizia que encontraríamos a paz lá. Encontrei a paz alguns anos depois numa missão divina.
    Ângela me perguntou sobre meu passado. Inventei uma historia, onde eu tinha uma família perfeita, feliz e viva. Contei coisas engraçadas sobre minha mãe. Contei sobre o arroz que ela queimou uma semana antes.
    Tudo mentira. Ângela ria.
    A festa já havia começado. A conversa estava tão boa que nem percebemos.
    Umas trinta pessoas estavam ali. A casa não era grande, tendo apenas um quarto, sala, cozinha e banheiro. Não era muito confortável, os cômodos eram minúsculos. Mas aconchegantes.
    Percebi que Ângela foi conversar com outros amigos. Fico sozinho. Algumas pessoas que passavam por mim, falavam comigo e ofereciam bebidas. Mas recusei. Jamais havia bebido álcool.
    Tentam puxar assunto, mas ignoro-as. Vejo os passos de Ângela, observo aquele sorriso saltar de conversa em conversa. Com a mão direita ela coloca uma mexa do cabelo atrás da orelha. Olha-me e sorri. Então some na multidão.
    A música esta cada vez mais alta. As luzes coloridas fazem minha visão ficar turva. De repente alguém grita ao pé do meu ouvido.
    “Quer ir ao quarto?” – era Ângela, rebolava e bebia uma bebida colorida.
    “Fazer o que?” – Pergunto... Atualmente me envergonho disso.
    Ela se inclina e me responde com um beijo.
    Um beijo de língua, sinto o sabor do álcool, mas não recuo, sinto o calor da sua língua, dança na minha boca.
    Beijo termina. Ela sorri.
    Agarra minha mão me puxa em direção ao quarto. Minúsculo quarto.
    Meu coração estava batendo o mais rápido possível. Ela abre a porta branca e entramos naquele pequeno espaço, com uma cama que tem um abajur na cabeceira, uma arara com diversas roupas espalhadas. Sobre a cama, estava um cara de porte físico bem atlético, junto de uma garota ruiva, totalmente nus.
    Ângela faz sinal para que saiam, foi quando notei, que ela era a dona da casa.
    Os dois obedecem, sem retrucar. Saem e fecham a porta.
    Ângela ri. Começa a dançar.
    Sou virgem. Ela sabe disso. Segura minhas mãos e põe sobre em sua barriga. Estava quente.
    Ainda segurando minhas mãos, sobe devagar sobre aquele seu corpo macio, fazendo com que eu tire sua camiseta. De sutiã preto ela rebola.
    Aquele excesso de informações, misturado com a bagunça que meus hormônios faziam dentro de mim, me deixava meio perdido.
    “O que eu faço?” Pensava frequentemente. Mas Ângela me dava às direções.
    Soltará o sutiã. Aquele belo par de seios do tamanho de maçãs, me fez vidrar ainda mais naquele corpo. Belas maçãs rosadas. Ela continua controlando minhas mãos. Passa elas sobre as maçãs, meu corpo esquenta. Ela mordisca meu lábio e se entrega num beijo estalado. Um beijo forte, com fogo e paixão.
    Ela deita. Olha-me nos olhos.
    Como se meu cérebro tivesse recebido instruções através daquele beijo, ele passa a fazer tudo automaticamente. Passo minha língua naquelas belas maçãs rosadas, desço pela sua barriga e abro seu short. Retiro-o e fico olhando para sua calcinha roxa com lacinho preto.
    Sem pensar duas vezes retiro toda minha roupa, não me importo em ficar nu. Deito sobre aquela garota de seios rosados, ela esta toda nua agora. Faço os movimentos no quadril como se estivesse programado no meu instinto.
    Movimentos repetidos. Corpos quentes.
    Sinto suas unhas arranharem minhas costas. Passo a mão em seu rosto. Em seu cabelo. Em seus braços, peitos. Beijo seu pescoço. Ela me agarra com mais força.
    Acelero o movimento. Ida e volta sem pausa.
    Novamente ela segura minha mão, leva até seu pescoço, o seguro e a beijo. Beijo firme.
    Ida e volta. Vai e vem sem pausa.
    Ela se contorce de prazer. Suas unhas arranham minhas costas, mais e mais. Suas pernas se contraem. Ela geme. Gemido abafado.
    Sinto minhas costas arderem. Seus olhos estão revirados e sua boca aberta.
    Gozo.
    Então foi quando percebi. Ela estava sufocando. Já havia sufocado, estava morrendo. Suas mãos caem sem força sobre a cama.
    Penso em pedir ajuda, mas minha voz não quer sair. Aqueles lábios que me beijavam há pouco tempo atrás estavam arroxeando. Ela não se move. O abajur na cabeceira da cama havia caído por causa do vai e vem.
    Entro em pânico. Corro para o banheiro e vomito. Vomito muito. Sento ao lado do vazo e começo a chorar.
    “O que houve?”
    “O que eu fiz?”
    Essas perguntas varriam minha mente. Eu precisava de ajuda. Ninguém me ajudaria. Minha avó ficaria louca. Choraria sem parar.
    “Você se tornou como sua mãe.” – Diria ela gritando e tentando furar o cerco policial.
    Eu estava sozinho. Ninguém poderia me consolar. Mas no meio daquele choro, tive forças para ficar em pé. Deixo o corpo do meu corpo sobre a pia, enquanto me olho no espelho. Vejo meu reflexo. Aparentava ser bem mais jovem. Cabelos bagunçados, nada de barba e olhos inchados. Aquela imagem me faz rir. Estar totalmente em pânico e não ter nenhuma saída, me fazia rir.
    Rir era a única coisa que poderia me ajudar.
    Penteio o cabelo com um pente que estava ali. Estou mais calmo. Respiro fundo. Mesmo sem entender o que aconteceu. Sorrio para o reflexo e ele me imita.
    Volto para o quarto.
    Ângela ainda esta lá. Nua e linda. A luz reflete sua pele pálida. Deito-me ao seu lado. Aconchego minha cabeça sobre seu ombro.
    “Como isso aconteceu?” – Pergunto a ela.
    “Perdoa-me, ok? Foi sem querer” – Tento me redimir com ela.
    A cubro para que não sinta frio. O som estava bem alto, poderia atrapalhar seu sono.
    Sono profundo.
    Sua boa ainda esta aberta, assim como seus olhos, que mesmo revirados são lindos.
    “O que eu fiz?”
    “o que estou fazendo?”
    Minha mente esta tentando me trazer para a realidade. Matei mesmo aquela garota. Sem motivo algum.
    Matei por ela ser linda? Não.
    Matei por que me apaixonei? Não.
    Não havia explicação, apenas duvidas. Coloco minha roupa e a visto também. Desculpa Ângela. Coloco seu corpo no meio das roupas que estão jogadas na arara. E me despeço. Sinto vontade de beija-la, mas minha sanidade ainda falava comigo. Ainda
  • Introdução - Crimes Socias e Matemática Social.

    Preciso falar de duas teorias que me perseguem há anos, MATEMÁTICA SOCIAL E CRIMES SOCIAIS.
    Falar ou escrever qualquer das duas agora seria extenso e logo você leitor desistiria dessa teoria.
    Antes eu preciso falar de mim. Nesse momento encontro-me sem emprego, ainda estudando, sem namorada e aos quarenta anos morando com meus pais, acredito que seja por causa de minha ansiedade, que se resulta em minha falência financeira e o desperdício de tempo que se resulta perder o foco muito rapidamente nas coisas que faço para mim. Mas acredite, quando trabalho para os outros, sempre dou 150%, como isso é possível, não sei, não tenho a menor ideia. Como muitos quarentões, estou ficando para trás e correr aos vinte é muito mais fácil e mais rápido que aos quarenta. Mas logo arranjo algo para fazer e vou dar meus 150% e deixar as minhas coisas de novo no canto do quarto, e se der tudo certo, faço inglês, porque eu sempre quero aprender algo novo. Lei do Ivan nº 01 – Aprender != Dinheiro.
    Talvez agora você diga, Matemática Social?! Isso existe? E você não vai acreditar em mim. Isso me faz lembrar quando eu tinha doze anos de idade, quando eu disse que seria legal ter um telefone móvel para cada pessoa. Os amigos de escola, minha família e conhecidos riam de mim. Hoje você riria de mim também? Ou quando eu disse, em uma aula de datilografia, que seria muito bom se tivesse uma máquina de escrever que as letras apareciam na tela e você poderia corrigir as palavras erradas, sem a necessidade de trocar de folha. Preciso dizer o que meus amigos e familiares diziam de mim?
    A questão é que as ideias vêm, começa a crescer e não tem por ondem sair, e ai as vezes eu escrevo, as vezes eu as mato. Mas as duas ideias do início não são para mim e sim para o todo, seja aqui no Brasil ou em Marte quando alguém morar lá.
    Definir Matemática Social é fácil. Tudo o que você faz, ou deixa de fazer, retornará para a sociedade em que você vive.
    Definir Crimes Sociais é mais fácil ainda. Tudo o que você faz e pode ser considerado crime comum, ou que qualquer pode fazer, você fará de tudo para que esse crime tenha penas ou consequências brandas ou deixem de ser crimes. Por quê? Porque você não quer que você, seu filho ou alguém do seu círculo social seja punido por algum crime que ele tenha cometido.
    Agora eu tenho a tarefa de fazer post explicando essas duas teorias.
    Se Deus existe, vou ter uma conversa com Ele, reclamar de tudo que ele fez de errado comigo.
  • Jerry Bocchio – Detetive Particular – Capítulo II: O Salão de Beleza

    Por causa de um erro em minhas suposições, eu havia me exposto a Alice Harback. Agora ela sabia que era alvo de uma investigação. Eu sei que as mentes mais brilhantes também erram, por exemplo, o inventor do salpicão de frango quando decidiu colocar maçãs na receita. Só que ao invés de enfiar o erro goela abaixo das pessoas, como fez o inventor do salpicão de frango, eu precisava de uma nova estratégia para corrigir o erro.
    Porém, antes de traçar qualquer estratégia, eu precisava enfrentar um furioso Allan Tresekos, que estava em meu escritório questionando meus métodos:
    – Detetive, como que você não sabia que Jack era o cachorro?
    – Ah, vou te dizer uma coisa também, que mania idiota é essa de as pessoas darem nome de gente pra bicho? Nome de cachorro tem que ser Rex, Totó, Fido etc. Não Jack! Daqui a pouco vão começar a dar nome de bicho pra gente. O cara vai no cartório e registra o nome do filho como Flufy da Silva. Ia ser uma bagunça.
    – Custava você fazer o seu trabalho de detetive e investigar? Meia hora de investigação e você descobriria que ele era um cachorro. Além disso, se você olhasse na internet, veria que aquilo era um cemitério de animais.
    – Não tente ensinar o padre a rezar a missa! Vê se eu fico dando pitaco no seu trabalho? Eu não vou numa construção sua pra falar "você devia fazer melhor seu trabalho de engenheiro tipo... Tipo... Fazer o reboque da parede com gesso".
    – O senhor quis dizer "reboco da parede", detetive?
    – Ué, tem diferença, é?
    – Ai, meu Deus!
    – Sabe de uma coisa, senhor Allan? O senhor parece muito com o meu capitão quando eu era da Polícia. Ele também tinha essa mania de ficar com a mão no rosto falando "ai, meu Deus" pra todo lado. Vocês devem ser muito religiosos.
    – O senhor era da Polícia, detetive?
    – Sim, mas eu saí de lá e achei melhor ser detetive particular. Essas repartições públicas engessam demais pessoas de espírito livre como eu. Eles nunca concordavam com meus métodos.
    – Faço uma ideia do porquê.
    Esse último comentário de Allan me deixou ressabiado. Parece que ele queria dizer algo com aquela fala. Fiquei encarando por alguns instantes em silêncio pensando em uma resposta boa pra ele, mas relevei. Quando eu entro em uma investigação, vou até o fim. Além disso, eu poderia ganhar um bom dinheiro no final.
    – Muito bem, senhor Allan, vamos voltar ao caso. O senhor desconfia que Alice Harback é, na verdade, um homem disfarçado, certo? Bom, pra um homem andar como uma mulher por um dia inteiro sem ser notado, ele precisaria de uma maquiagem ou um profissional de maquiagem de primeira linha. Já que o senhor parece ter tanta intimidade com a família, saberia dizer se a Alice conta com algum profissional assim?
    A feição de Allan mudou, parecia que ele tinha gostado do meu raciocínio. Ele se sentou na cadeira e começou a puxar algo da memória.
    – Bom, Alice Harback sempre foi uma mulher muito vaidosa. E ela tem um salão de beleza de confiança que ela sempre vai. É o Hamilton's Fashion.
    – Poxa vida, senhor Allan! O senhor sabe mesmo bastante detalhes da vida da Alice, hein?
    – O que você quer dizer com isso, detetive?
    – Não, Nada! Só que... Vamos deixar as coisas claras aqui. Todo homem já se apaixonou por uma mulher mais velha, né não?
    – Como é que é?
    – Ah, qual é? Tem problema não. Eu mesmo, quando estava na Academia, tive um relacionamento com uma das copeiras. Ah, ela fazia uma broa que...
    – Senhor detetive! – Gritou Allan, esmurrando a mesa e me assustando.
    – Tá bom! Tá bom! Já não está mais aqui quem falou! Eu vou pra esse salão de beleza pra ver se tem algo que me dê uma pista.
    – Acho melhor eu ir junto pra evitar mais problemas.
    Allan me levou até o local. Durante a viagem, ele me encarava com um olhar sério. Minha intuição me dizia que foi por causa da insinuação de que talvez ele tivesse uma queda pela senhora Alice Harback. Mas, convenhamos: esse cara sabe demais da vida dela. Até o salão de beleza ele sabia. Ah, só pra constar: não vamos mais tocar nesse assunto do meu relacionamento com a copeira, tudo bem? É que não acabou muito bem pro meu lado.
    Chegamos ao salão de beleza. Era um salão muito grande e parecia ser frequentado por mulheres da alta sociedade. A recepcionista veio falar conosco. E pra atrapalhar, ela reconheceu o Allan.
    – Allan Tresekos! Que bom ver o senhor aqui de novo! Faz muito tempo que o senhor não vem. Veio trazer alguém da sua família dessa vez?
    Se todo mundo ficar reconhecendo o Allan assim, meus disfarces vão para o brejo! Afinal, Alice Harback já sabia que era alvo de investigação. Aí alguém fala pra ela que o Allan apareceu lá e pronto! Então, dessa vez, eu resolvi tomar as rédeas da conversa:
    – Não, ele veio me trazer a este local. Meu nome é José Caravejo, sou diretor de teatro.
    – Muito prazer, senhor Caravejo! Quais peças o senhor dirigiu?
    – Como? A senhora não sabe? Não é possível! Eu exijo falar com o gerente! Como que um salão desses não respeita a arte? A arte! – Eu tinha um vizinho que era desse meio e falava todo afetado, foi daí que eu peguei a referência pra esse disfarce. Inclusive a pose com braço esquerdo inclinado pra cima, como se eu estivesse pegando uma fruta da árvore, toda vez que eu falava "a arte" – Me diga seu nome, moça! E chame o gerente agora!
    – Não, não. Tudo bem, acalme-se! Eu prometo que vou me informar. Em que posso ser útil?
    – Pois bem, na minha próxima peça, um dos atores fará um papel de um militar disfarçado de mulher numa família e...
    – Hehehe, Você já vai contar o final da peça, diretor? – Disse Allan, me interrompendo e me dando um beliscão no braço ainda!
    – Pare de interromper a arte, Allan! A arte! Só porque o senhor patrocina a minha peça, o senhor acha que está acima da arte? A arte! Você é o dinheiro e eu sou a arte! A arte! A arte não se interrompe! A arte! Olha só, agora eu perdi a minha linha de raciocínio.
    – O senhor não vai fazer a pose, senhor Caravejo? – Perguntou a recepcionista.
    – Não, só quando eu falo a palavra "arte" na frase. A arte!
    – Nossa! Vocês, do meio artístico são... Bem... Particulares.
    – A senhora está caçoando da arte, moça? A arte!
    – Não, não! Olha, pelo que eu entendi, o senhor precisa de um maquiador para fazer um ator homem se passar por mulher na sua peça, certo?
    – Você é esperta, moça! Os olhos da arte me trouxeram para o lugar certo. A arte!
    – Ai, meu Deus do céu! – Esse Allan não para de fazer oração!
    – OK, vou chamar o nosso principal maquiador aqui. Ele é o que dá o nome ao salão. Aguardem nessa sala de espera que ele já vem.
    A recepcionista nos deixou gentilmente nas cadeiras da sala de espera e saiu em direção à porta de uma sala que ficava no final do salão. Ela atravessou todo o salão, entrou pela porta e fechou rapidamente. O salão estava com todas as cadeiras ocupadas, cada uma com uma mulher sentada enquanto o profissional fazia seus serviços nos cabelos, ou nas unhas, ou na maquiagem de cada uma. Um cheiro de descolorante era forte no ar e o barulho dos secadores de cabelo juntos compunham o ambiente.
    Logo veio até nós o dono do local. Um rapaz sorridente e muito simpático. E, por incrível que pareça, ele também reconheceu o Allan:
    – Allan Tresekos! Há quanto tempo! Não te vejo desde quando a Dona Alice foi internada.
    Opa, opa, opa! Dona Alice seria a Alice Harback? Allan nunca me disse que ela foi internada. Além disso, parece que ele ia lá junto com ela. Então eu precisei intervir:
    – Olá! O senhor deve ser o Hamilton que dá o nome ao salão. Muito prazer, eu sou José Caravejo.
    – O prazer é meu de receber um diretor de teatro tão renomado no meu salão. A propósito, não precisa pronunciar meu nome com sotaque estrangeiro, meu nome é aportuguesado mesmo.
    – Aaaah! Tudo bem. Só uma pergunta: quem seria essa "Dona Alice" à qual você se referiu?
    – Alice Harback, acho que o senhor deve conhecer, já que anda com o Allan.
    Opa, opa, opa e mais opa! Quer dizer que quem anda com o Allan conhece a Alice automaticamente?
    – Allan Tresekos, quando combinamos o seu patrocínio, o senhor ficou de me passar as informações minuciosamente. O senhor quer atrapalhar a arte? A arte!
    – Eeeh... Eu não sabia que isso era importante pra história da peça.
    – Como não? Isso faz parte da história central da peça!
    – Desculpem-me, mas... A peça é sobre a Dona Alice? Ela nunca me disse que fariam isso.
    – Não posso contar a história agora, Hamilton. A arte é um castelo que precisa ser construído aos poucos. A arte! – Muito boa essa analogia, hein?
    – OK... Então, a Manu me disse que vocês precisam de um maquiador para fazer um ator se passar por mulher no palco. Bom, eu posso mostrar pra vocês o meu trabalho? Eu faço uma maquiagem mais simples pra vocês verem, aí vocês decidem se me contratam ou não. Onde está o ator?
    Allan queria acabar logo com a situação, então tentou entrar na conversa. Mas eu precisava de mais informações. E aquele maquiador parecia saber bastante.
    – O ator não pôde vir. Podemos marcar pra outro dia?
    – Não, tudo bem, pode fazer no Allan mesmo!
    – O quê? Cê tá doido?
    – Allan, faça isso pela arte! A arte!
    – Ah, perfeito, senhores! Allan, acompanhe a Manu até a cadeira enquanto o diretor me diz como ele quer que fique.
    – Ei, eu não concordei com isso!
    Pois esse tal de Hamilton faz mesmo uma maquiagem perfeita! O Allan ficou uma modelo fotográfica! Além disso, ele também sabia muito sobre a vida de Alice Harback. Enquanto Hamilton ia trabalhando no Allan, ele ia me dando mais alguns detalhes.
    Parece que Alice Harback contraiu um tumor há dois anos atrás e foi dada como sem esperanças. Mas, meio que milagrosamente, ela voltou e o tumor regrediu. Esses médicos de ricos são muito competentes mesmo!
    Além disso, parece que enquanto o General Ivan Harback lutava na guerra, Alice Harback frequentava o salão de beleza na companhia de Allan. E isso só acabou quando ela ficou doente.
    Mas esse Allan me deve muitas explicações! E não vai ser o rostinho bonito dele que vai me fazer titubear não, viu?
    Continua...
  • Jerry Bocchio – Detetive Particular – Capítulo III: O Cemitério Militar

    Após a visita ao salão de beleza favorito da senhora Alice Harback, acabei descobrindo que Allan Tresekos estava me escondendo informações importantes sobre o caso. No final das contas, fiquei tão intrigado com essa descoberta que esqueci do principal, que era saber como eram os procedimentos do salão em Alice Harback.
    O maquiador conseguia sim fazer perfeitamente um homem se passar por mulher. O Allan teve até trabalho para tirar toda a maquiagem. Porém, isso não era suficiente para comprovar a teoria maluca de Allan. Eu precisava de alguma prova palpável. Algo que demonstrasse que, de fato, tinha um doido que se inspirou em comédias de Hollywood dos anos 90 para executar uma vingança. Mas se o Allan continuar me escondendo informações, será impossível achar. Então, tive de confrontá-lo em meu escritório. Agora era o Allan que ia enfrentar um furioso Jerry Bocchio.
    – Senhor Allan, como você pôde me esconder essas informações? Elas são muito necessárias para o caso! O fato de saber que Alice foi internada sem esperanças de sobreviver muda toda minha linha de investigação. Você acha que eu sou tão burro a ponto de não descobrir?
    – Eu já disse que não sabia que eram importantes para o caso. Além disso, achei você meio burro mesmo desde a nossa primeira conversa.
    Então, Allan achava mesmo que eu era burro. Eu só queria saber o que influenciou essa suposição dele. Mais uma vez eu estava diante de alguém que não tinha confiança em meus métodos. Talvez fosse por isso que Allan gostava tanto de me acompanhar em minhas investigações.
    Allan percebeu que sua fala havia deixado um silêncio constrangedor e ficou incomodado, então tentou retornar ao assunto:
    – Mas me diga, detetive: tem algo mais que gostaria de saber?
    – Eu só quero mais detalhes sobre a internação de Alice.
    – Bom, como amigo da família, eu tentei visitar Alice no hospital. Mas os enfermeiros me diziam que ela não aceitava visitas de ninguém. Eu fiquei sabendo que nem da própria família ela aceitava.
    – Muito estranho, mas justificável. Talvez ela não quisesse que alguém tivesse uma última recordação dela sofrendo numa maca de hospital. Mas antes de ela ser internada, por que o senhor a acompanhava ao salão de beleza?
    – Bom... Ela se sentia sozinha quando seu marido estava lutando na guerra. Eu costumava passar as tardes dando companhia a ela.
    – Você ia até a casa dela?
    – Olha, detetive... Sim! Eu ia pra tomar café com ela. Mas era só isso. Aí, quando era dia dela ir ao salão, eu deixava ela lá e ia pra minha casa.
    – Só mais uma pergunta: ela adoeceu antes de ficar sabendo da morte de Ivan ou depois?
    – Antes. Só que a morte de Ivan aconteceu bem na época da recuperação de Alice.
    – OK, vou encerrar minhas atividades nesse caso por hoje então.
    – Como assim? Não vai investigar nenhum lugar hoje?
    – Olha, senhor Allan, isso foi muita informação nova. Preciso processar tudo um pouco pra traçar uma nova estratégia. E como eu sou meio burro, preciso de, pelo menos, um dia inteiro pra isso.
    – Ai, detetive, sinto muito se você se magoou com o que eu disse. Eu reconheço que você tem métodos de investigação e de raciocínio um tanto quanto heterodoxos, então deveria saber que isso causa um estranhamento nas pessoas.
    – Olha só! Agora fica me chamando de metido a hétero top!
    – O que? Não tem nada a ver uma coisa com a outra! Ah, quer saber? Eu estou achando melhor a gente seguir amanhã mesmo.
    Allan se levantou e saiu do meu escritório. Era exatamente isso o que eu planejava, pois minha intenção, na realidade, não era de continuar no dia seguinte, era de continuar sem o Allan. Allan era reconhecido por todos, isso atrapalhava minha investigação. Além disso, com essa história contada por ele hoje, percebi também que Allan estava muito envolvido no caso. Esse envolvimento afetivo também poderia atrapalhar.
    Com Allan fora do meu caminho, era hora de pensar em alguma outra linha de investigação. Eu poderia tentar o hospital onde Alice foi internada, mas esses médicos não gostam muito de falar sobre seus pacientes. Eles ficam falando que tem a ver com uma tal de ética. Nunca entendi essas coisas.
    Talvez o cemitério onde Ivan está enterrado poderia dar uma pista. Se eu conseguir as informações de quem foi no velório, quem fez o discurso ou quem organizou, talvez eu consiga a informação de alguém estranho aparecendo lá. Alguém que procura vingança, quando fica sabendo da morte daquele que considera ser seu algoz, costuma aparecer no velório pra comprovar. Vi muito isso nos filmes. É só uma suposição, mas é o que tenho pra hoje.
    Eu me lembrei que Allan havia me dito que militares e seus familiares tinham direito a um cemitério exclusivo. Pesquisei na internet qual era na cidade e encontrei o Cemitério Militar. Bem óbvio, não? Ele contava com tudo, inclusive uma administração com um cartório anexo ao lado do cemitério para as certidões de óbito. Então decidi que era lá que eu ia para buscar mais alguma pista.
    Fui à noite para evitar chamar muito a atenção. Pensei que era só chegar lá e procurar o túmulo, mas não, parece que você precisa se identificar também pra administração. Eu não sabia que funcionava desse jeito. Aliás, eu não sabia como nenhum cemitério funcionava porque nunca fui em um. Sempre tive medo. No balcão da administração estava apenas um senhor que era o responsável pela identificação. Ele sempre falava de um modo firme e direto, como um militar. Já começou perguntando o meu nome e o que eu ia fazer ali aquela hora da noite. Então precisei inventar mais um disfarce. Comecei a dar uns soluços e fazer cara de choro. Aprendi a fazer isso num tutorial do YouTube que ensinava a disfarçar tristeza.
    – Meu nome é Rubens Augusto Marchiello. Eu vim aqui prestar homenagem ao General Ivan Harback. Eu fiquei sabendo recentemente sobre a morte dele.
    – O senhor é alguém próximo a ele?
    – Eu não diria próximo, mas ele foi um homem que marcou a minha vida. O General Ivan Harback me tirou do mundo das drogas e me colocou no exército fazendo eu tomar jeito na vida – uma história grandiosa e que agrada o interlocutor sempre ofusca uma mentira, aprenda isso.
    – O General Ivan Harback nunca trabalhou no alistamento – OK, dessa vez não foi do jeito que eu esperava devido a essa informação.
    – Aaaah... É que ele abriu essa exceção pra mim. – Comecei a aumentar a frequência dos soluços – ele tinha esse dom de ver disciplina nas pessoas e ele enxergou isso em mim.
    – O General Ivan Harback era um militar reservado, não gostava de ficar fora de seu gabinete – que cara chato! Ele tem resposta pra tudo. Esses militares...
    – Aaaah... É que eu disse que eu era uma exceção, né?
    – Escute aqui, rapaz, eu só não te chuto pra fora daqui porque o General Ivan Harback não está enterrado neste cemitério.
    Mais uma informação nova escondida de mim. Fiquei tão surpreso que até saí do personagem.
    – Não? Como assim?
    – O General Ivan Harback desertou durante a guerra e perdeu seus benefícios como militar. Agora, senhor Rubens, se é que é esse mesmo o seu nome, dê o fora daqui!
    Além de chato, ele era bem esquentadinho também. Talvez fosse pelo fato de trabalhar à noite. Já vi muitos médicos falando que não se deve trocar o dia pela noite porque aumenta o estresse, eu acho.
    Enfim, durante a guerra que o Ivan lutava, Alice adoeceu e ele desertou. Além disso, no hospital, Alice não deixava ninguém visitá-la. Eu saí do prédio da administração desconfiado de que esses eventos possuem algo em comum. Eu estava na calçada matutando sobre isso quando me assustei com uma voz de uma mulher:
    – Bisbilhotando na minha vida, Jerry Bocchio?
    Era Alice Harback. Dei o azar de ir até lá bem num dia que ela ia visitar o túmulo do marido... Opa! O marido não estava enterrado lá! O que ela estava fazendo ali?
    – Olha, senhora Alice, se a senhora veio visitar seu marido, está perdendo tempo. Ele não está enterrado aqui.
    – Mas você é muito burro mesmo! Você acha que eu não sei onde meu marido está enterrado? Eu vim até aqui porque eu quero saber porque estou sendo investigada. Você tem o dever de me falar!
    Será mesmo que eu conto a teoria de Allan? Ainda bem que eu não sou engessado pelas instituições governamentais.
    – Eu? Investigando a senhora? Não, eu vim aqui porque... porque... eu vim visitar o túmulo do meu superior na polícia...
    – Você foi até o meu clube, depois foi ao enterro do meu cachorro, depois até o meu salão de beleza e agora está na porta do Cemitério Militar, com certeza presumindo que meu marido estivesse enterrado ali. E muitas vezes com aquele enxerido do Allan Tresekos. Aquele idiota fica me mandando mensagem direto desde quando saí do hospital. Você não está pensando que eu matei o meu marido, está?
    Droga! Eu sabia que essas pessoas reconhecendo o Allan iam acabar me atrapalhando.
    – Olha, como eu sou um detetive particular, e não da Polícia, eu não preciso ficar dando satisfação sobre minhas linhas de investigação. Então, se a senhora me der licença, eu preciso voltar ao meu escritório pra encerrar o dia.
    – Está bem então, detetive! Eu vou tomar providências para que o senhor se mantenha longe de mim e da minha família.
    Olha só! Ela veio me ameaçar sozinha, sem nenhuma autoridade por perto. Pelo visto eu estou no caminho certo. E ela está fazendo alguma coisa errada. Tomei meu rumo e voltei pra casa tentando imaginar alguma ligação entre os eventos que eu descobri.
    No dia seguinte, quando fui abrir o escritório, tinha uma pessoa me esperando na porta. Na hora me deu um receio, mas era apenas meu antigo parceiro da Polícia, Thomas Mangalvo. Thomas era o único que entendia meu raciocínio lá dentro e apreciava muito meu jeito de trabalhar. Ele gostava de ser meu parceiro e dizia que nós éramos a dupla de amigos Tom & Jerry, baseado no desenho do gato e rato. Isso indica apenas uma coisa: ele nunca assistiu Tom & Jerry.
    – E aí Jerry, beleza?
    – E aí Tom? O que o traz aqui? A Polícia precisa de ajuda minha? Eu estou num caso mas posso ver um espaço.
    – É, eu tô sabendo. Você está investigando a senhora Alice Harback, né?
    – Ué, como assim? Como você está sabendo disso? E a sua cara ainda me indica que você vai me dar más notícias.
    – É, pois é, Jerry. A senhora Alice Harback foi na Polícia hoje de manhã pedir medidas restritivas contra você.
    – Ai, que droga! Quer dizer que eu vou ter que passar por aquilo de novo?
    A nossa Polícia, quando recebe uma solicitação de medidas restritivas contra um detetive particular, solicita uma sabatina a ele para saber detalhes sobre a investigação. Se ela acha a investigação pertinente, ela autoriza a investigação com supervisão dela, mas se não achar, ela defere as medidas restritivas.
    – Mas não se preocupa não, Jerry! Eu vou fazer parte da sabatina. Como eu já te conheço, eu posso convencer a autorizar.
    – E quem vai ser o outro?
    – O Capitão Gregade.
    Essa não! O Capitão Lester Gregade é aquele que eu disse ao Allan que era meu capitão, que eu falei que também ficava falando "ai meu Deus, ai meu Deus" pra todo lado. Ele sempre foi muito rígido em relação às regras da Polícia. Ou seja, agora eu precisava mesmo de uma prova palpável e convincente.
    – Ah, que legal, Tom! Agora eu me ferrei de vez!
    – Ué, sua investigação tá muito parada?
    – Eu só tenho uma teoria maluca e nenhuma prova.
    – Caramba, Jerry! Então você precisa pôr sua genialidade pra funcionar rápido. A sabatina é depois de amanhã. Eu até me ofereceria pra ajudar, mas vou participar da sabatina, então não posso me envolver.
    E agora? Não pretendo desistir, mas tenho só hoje e amanhã pra conseguir algo. Espero que Tom esteja certo em relação à minha genialidade.
    Continua...
  • Jerry Bocchio – Detetive Particular – Capítulo IV: A Padaria Nova Caledônia

    Tom veio até meu escritório me dar péssimas notícias. Alice Harback foi até a Polícia pedir medidas restritivas contra mim. Agora eu terei que ir até a delegacia onde eu trabalhava para prestar contas sobre minha investigação. E o que é pior, terei que fazer isso para o Capitão Lester Gregade, meu antigo capitão quando eu trabalhava na Polícia.
    Agora só tenho dois dias, contando com esse, para ir atrás de algo que sustente minha investigação. O problema é que, além de eu não encontrar nada, ainda vou me enfiando num emaranhado de informações cada vez maior. Todas informações sem provas.
    Eu pensei em tentar voltar ao Hamilton's Fashion e dar uma prensa no maquiador, mas lembrei que quando Alice veio me ameaçar, ela citou que eu fui lá. Logo, é quase certeza que ela pegou essa informação com Hamilton e veio até mim. Então poderia ser perda de tempo ir até lá.
    Se a teoria maluca de Allan estiver certa, descobrir detalhes sobre a morte do General Ivan Harback ajudaria a dar um norte para minha investigação. Afinal de contas, seria um inimigo se vingando da família dele. Então comecei a tentar ver na própria internet mesmo se achava notícias sobre a morte do General. Tentei até entrar em sistemas próprios para a polícia com um login criado por um amigo meu, que eu não vou falar o nome. Tudo em vão. A única coisa que eu encontrei foi que ele havia desertado e desaparecido, depois disso, mais nada. Não encontrei nem sequer registros de punição a ele, já que desertar é crime. E olha que eu até tentei ligar para alguns contatos do Exército, sem solução.
    Não via outra saída, a não ser ir até o hospital onde Alice Harback havia sido internada. Eu teria que ser muito furtivo pra não chamar muita atenção. Só que quando me preparava para sair, meu telefone tocou. Era Allan Tresekos:
    – Alô, detetive Jerry Bocchio?
    – Sim, Allan, pode falar.
    – Preciso que o senhor venha à minha casa. Mandei meu motorista te buscar.
    – Olha, senhor Allan, eu estou com muita pressa pra resolver esse caso. Isso virou urgente.
    – Eu sei, detetive. É justamente sobre isso que eu quero falar. Só que, dessa vez, prefiro que seja em minha casa.
    Fui até a porta do escritório e, do lado de fora, estava o carro do Allan Tresekos com um homem em pé ao lado da porta do carro. Ele disse meu nome, falou que Allan estava me esperando e abriu a porta do carona. Entrei no carro pensando que agora tinha ferrado de vez. Allan também me escondia muitas informações. Isso também fazia dele um suspeito para mim.
    Chegamos à casa de Allan. Era uma mansão grande. O motorista passou pelo portão, atravessou o jardim e me deixou na porta. Allan estava me esperando no rol de entrada com um homem ao lado. Esse homem tinha cara de advogado. Desci do carro e andei até Allan, que também parecia apressado.
    – Doutor Perez, esse é o detetive que eu te falei. Jerry, esse é o Doutor Rodolfo Perez, meu advogado.
    Batata! Advogados... nunca me enganam. Enfim, nós três entramos e fomos até a sala de estar. O advogado e eu nos sentamos em poltronas e Allan, que continuou em pé, começou a falar.
    – É o seguinte, detetive: eu te chamei aqui porque Alice Harback foi até a Polícia e pediu medidas restritivas...
    – É, eu sei. Eu já estava indo investigar pra coletar provas pra sabatina de depois de amanhã quando o senhor me ligou. Não se preocupa não porque não é a primeira vez que fazem isso comigo.
    – Com você? Ela pediu medidas contra mim!
    – Eita! Você também? Parece que eu vou ter que me apressar ainda mais.
    – Então, sobre isso, eu gostaria que você ouvisse meu advogado. Doutor.
    O advogado levantou de sua poltrona e começou a falar:
    – Detetive, como vai? É um prazer conhecê-lo! – Detesto quando começam assim! Mau sinal.
    – Igualmente.
    – Eu estou aqui para combinar uma defesa com o senhor e o senhor Tresekos. Pra começar, eu peço para que o senhor pare imediatamente com as investigações.
    Ai, sabia! Sempre que um advogado começa falando manso, ele vai te jogar uma bomba. Mas dessa vez eu não queria saber de desistir. Tinha algo cheirando mal nesse caso, tão mal que encobria até o cheiro de lavanda da mansão de Allan (que, aliás, com tanto perfume disponível pra um cara rico como ele, ele escolheu lavanda?). Eu já não estava mais nem pensando no dinheiro, apenas em desvendar o mistério. Eu peitei o advogado.
    – Não mesmo! Tem algo estranho nesse caso e agora eu preciso descobrir o que é! Você sabia que o General Ivan Harback não morreu na guerra? Ele desertou. Ele morreu em outro lugar. E se ele voltou e foi assassinado aqui? Afinal, não possuem registros no Exército de qualquer tipo de punição, ele só consta como desaparecido.
    O advogado se surpreendeu com a descoberta que eu fiz sobre o General Ivan Harback. Porém Allan não parecia surpreso. Eu comecei a encarar Allan e ele começou a parecer nervoso. Aí eu precisei falar.
    – Allan, pelo visto, o senhor também tinha conhecimento dessa informação, não? Por que não me disse também?
    – Eu não sabia que era importante.
    – Tá virando personagem do Zorra Total, é? Só sabe dizer isso! Como você sabia disso?
    – Detetive, isso não é o que importa agora.
    – Escuta bem, senhor Allan. Você me contratou com uma teoria maluca na cabeça e eu fui o único que te deu ouvidos. Agora eu estou começando a perceber que isso é mais fundo do que parecia, mas não tenho nenhuma prova disso. Ou o senhor me diz tudo o que sabe, ou eu mesmo vou até a Polícia contar que toda a investigação foi baseada nessa sua ideia de comédia dos anos 90. Na frente da senhora Alice e tudo!
    Allan mudou sua feição de esnobe para uma feição mais de preocupação. Ele respirou fundo e dispensou seu advogado, que relutou um pouco, mas foi embora. Após isso, Allan pediu que eu o acompanhasse até a biblioteca da mansão. Lá, ele foi a uma estante velha, sem muito uso, no canto. Abriu uma de suas gavetas e retirou uma caixa. Fiquei apreensivo ao ver essa cena, mas ele logo abriu a caixa e nela haviam papéis. Eram cartas escritas por Ivan Harback para Alice Harback.
    – Como você conseguiu isso?
    – Alice recebia cartas de Ivan por meio de um contato de confiança dele no Exército que ele tinha no país quando estava lutando. Eu via Alice recebendo essas cartas.
    – Tá, mas como você conseguiu as cartas dela? Você ainda não respondeu.
    – Na verdade, após a internação de Alice, eu vi esse rapaz procurando ela, conversei com ele e fiquei de entregar as próximas cartas a ela no hospital, mas nunca consegui entregar.
    – Você ficou com elas todo esse tempo? Mesmo ela saindo do hospital?
    – É, ela ficou muito abalada com a morte do marido. Tanto é que o velório dele foi fechado. Talvez por causa justamente dele ter desertado.
    Opa! O velório foi fechado! Tá cada vez mais difícil achar alguém pra falar. Eu combinei de levar essas cartas para caso precisar na sabatina, em troca, Allan me fez prometer que descobriria a verdade e conseguir derrubar as medidas protetivas. Por que ele me pediu isso, sobre as medidas? Sei não, viu?
    No dia seguinte, analisei as cartas de Ivan para Alice. Pelo que entendi, o câncer de Alice já estava diagnosticado antes dela dar entrada no hospital. Ivan mandava as cartas preocupado se a doença iria se espalhar. Numa delas, ele dizia que estava preocupado com Alice, que não estava mais respondendo suas cartas e, por isso, decidiu deixar a luta para vê-la. Aí então estava o primeiro elo. Ivan Harback desertou durante a guerra para ir atrás de Alice.
    Porém, a carta que mais me chamou a atenção era uma que dizia o seguinte:
    "...Acabei de chegar no país, não posso passar no quartel general, pois o que eu fiz pode fazer com que eu seja preso. Em alguns dias, estarei no hospital. Não vou mais deixar o dever ficar entre nós dois."
    Só tinha um probleminha: essa carta era de um dia antes da Alice dar entrada no hospital. Pra falar a verdade, não tinha só essa carta de antes dela dar entrada.
    E o que é pior, as cartas também não dão nenhuma pista do paradeiro de Ivan Harback antes de sua morte. Será que ele foi morto no hospital? Mas se ele foi morto no hospital, alguém teria chamado a polícia no dia, não? A não ser que tenha sido um crime perfeito.
    Eram muitas suposições e teorias e pouco tempo. Então, decidi ir para um lugar onde eu poderia organizar minhas ideias do melhor jeito possível: a Padaria Nova Caledônia.
    Eu sempre vou à Padaria Nova Caledônia quando tenho um caso muito difícil. Dessa vez, não era diferente. Entrei, sentei ao balcão de atendimento e logo veio o Seu Rogério, com um sorriso de orelha a orelha, me atender. O Seu Rogério é o dono da padaria. Ele gosta de mim como cliente porque acha que, um dia, eu vou aparecer nos noticiários que ele deixa passando para os clientes assistirem na padaria, gerando assim, publicidade pra ele.
    – Fala JB! Vai pedir o que?
    – Boa tarde Seu Rogério. Eu quero um pingado e um pão na chapa, só.
    – Xiii! Tá pedindo café da manhã à tarde? Já sei, tá com mais um caso complicado.
    – É, pois é. E o pior é que eu tenho pouco tempo pra resolver essa... Atchim!
    – Ô Zé Maria, ou apaga o cigarro ou vai fumar lá fora! O cara aqui tem alergia, pô! Mas desembucha aí, JB. É sobre o que o caso?
    – Não posso falar detalhes. Envolve gente importante.
    – Ah, então daqui a pouco você vai aparecer aqui na TV. Olha, quando der a entrevista, tenta dar aqui na frente da padaria. Tá aqui o seu pedido. A vítima morreu do quê? Tiro, veneno, acidente?
    – Não sei, não consigo achar nenhuma informação sobre a morte da vítima. Só sei que ele estava fora do país, aí voltou fugido e desapareceu. Depois disso mais nada, só a família dele que diz que ele morreu.
    – Rapaz! No velório não tava o corpo dele?
    – A família deixou o velório fechado.
    – Então o cara tá vivo, pô! Não tem informação da morte do cara, não tem acesso ao corpo e só a família sabe onde tá enterrado? Além do mais, o que tem de homem que fica se fingindo de morto por aí. Tipo o Zé Maria. Né não, Zé Maria?
    Esse Seu Rogério, sempre tenta dar o pitaco dele nos meus casos. Mas, pensando bem, talvez ele tenha razão dessa vez. Enquanto fui comendo meu lanche, fui pensando nessa linha de raciocínio.
    Mas do jeito que a história está indo, se Ivan Harback estiver mesmo vivo, ou alguém da família ou o contato dele que entregava as cartas saberia o paradeiro dele. Só que Alice Harback não me quer por perto da família, só me sobra o homem que entregava as cartas. Mas eu não faço ideia de quem ele é, e mesmo se soubesse, ele é um militar, fazer ele depor em uma investigação não oficial seria muito difícil. Além do que, a sabatina é amanhã.
    Então eu me toquei, a sabatina é amanhã. Se eu conseguir convencer o Capitão Gregade que Ivan Harback pode estar vivo, a Polícia iria supervisionar minha investigação, sendo mais fácil colher depoimentos. Terminei de tomar o lanche na padaria e fui agradecer o Seu Rogério:
    – Seu Rogério, o senhor é um... Atchim!
    – De novo, Zé Maria? Já falei que é perigoso ascender cigarro perto da chapa! Termina de falar aí, JB.
    – Eu só quero agradecer porque você me deu uma ideia pro caso. Valeu!
    – De nada, JB! Só não esquece de dar a entrevista aqui na frente da padaria, hein?
    Voltei pro meu escritório pra montar minha argumentação. Tenho que ser bem cuidadoso, pois o Capitão Gregade é bem rígido quanto aos protocolos da Polícia.
    Tá vendo só como a Padaria Nova Caledônia me ajuda?
    Continua...
  • Jerry Bocchio – Detetive Particular – Capitulo V: A Sabatina

    O dia amanheceu. Levantei confiante, sem medo do que poderia acontecer na sabatina. O caso ainda não estava solucionado, mas minha intuição, ah, minha intuição, dizia que o que eu estava prestes a fazer era o caminho certo.
    Saí da minha casa e fui andando em direção ao meu escritório. Mas não sem antes passar na Padaria Nova Caledônia e tomar meu café da manhã habitual. O Seu Rogério já chegou me perguntando quando eu ia dar uma entrevista sobre o caso. Eu prometi a ele que se alguma emissora de TV me procurasse, eu iria correndo para a fachada da padaria.
    Cheguei em meu escritório, peguei as cartas que estavam guardadas em uma gaveta com chave. Deixo essa gaveta apenas para minhas coisas importantes, como provas de casos grandes, cartas de ameaças recebidas e cupons de desconto da praça de alimentação do shopping da cidade. Repassei elas mais uma vez e pensei bem no que iria falar na sabatina, afinal, tudo o que eu disser será avaliado pelo Capitão Lester Gregade.
    O Capitão Lester Gregade é um homem que segue as regras à risca. Ele não tolera brechas. Segundo ele, se a Polícia não mostrar que está cumprindo seu papel dentro da lei, a população nunca vai respeitar e colaborar com a Polícia. Eu até concordo em partes com ele, mas e se as regras forem feitas por pessoas que não gostam de seguir regras, como ficaríamos? Por isso que saí da Polícia, às vezes, as regras parecem estar do lado errado da história.
    Peguei minhas coisas e saí do escritório. Fui andando em direção à delegacia onde trabalhei. Quando cheguei lá, vi que poucas coisas haviam mudado. Algumas pessoas novas, muitas pessoas conhecidas, até a cela onde ficavam os presos temporários tinha um rosto conhecido, um cara que tinha um bom advogado. A mesa onde eu trabalhava agora era ocupada por outro investigador, ele me parecia ser bem mais sério do que eu. Talvez seja perfeito para o Capitão Gregade.
    Eu fui até a mesa da secretária e era a mesma, Maria Silveira. Ela é uma pessoa legal, mas às vezes tem a incômoda mania de ser muito debochada. Quando ela me viu chegando, já foi logo falando:
    – Ah, Jerry, você aqui de novo? Nem como detetive particular você se livra de problemas, hein?
    – Que bom ver você também, Maria. Eu estou aqui pra falar com o Capitão Gregade.
    – Já tá todo mundo lá na sala de reuniões esperando você. É só ir lá.
    – Ué, não vai me levar até a sala?
    – Ué, por quê? Você já sabe o caminho.
    Então lá fui eu, na sala de reuniões da delegacia. A porta estava aberta e uma mesa enorme estava ocupada faltando apenas um lugar, que supus que era o meu. Nela, estavam o Capitão Gregade, Thomas Mangalvo, um promotor do Conselho de Justiça, Alice Harback e até o Allan Tresekos e seu advogado. Allan estava com um olhar muito temeroso, afinal, ele acreditava que eu iria expor a teoria maluca dele, de que Alice Harback era um homem disfarçado.
    Assim que me sentei, o Capitão Lester Gregade, sério como sempre, olhou fixamente para mim e começou a falar:
    – Antes de nós começarmos, quero que você me escute bem, Jerry Bocchio. Não é só porque o senhor está fora da corporação que o senhor pode fazer tudo do jeito que deseja. Nós temos leis pra cumprir, todos nós. Investigação não te dá carta branca para importunar ninguém. Estou sendo claro?
    Agora era a hora do show:
    – Sim senhor, sempre tive consciência disso. Mas, em minha defesa, eu gostaria de falar duas coisas: primeiro, que eu não importunei ninguém, a senhora Alice Harback não estava presente em quase nenhum dos lugares onde investiguei, segundo, quando ela ficar sabendo da minha linha de investigação, vai querer retirar a queixa na hora.
    Nesse momento, todos os olhares vieram para mim com curiosidade, até o de Allan. Então, o Capitão Gregade perguntou:
    – Posso saber que informação tão estupefaciente é essa?
    – Segundo as informações que eu já apurei, tenho muitos motivos para acreditar que o General Ivan Harback está vivo.
    Geralmente, num filme, nessa hora todos os personagens fariam um "ooooh" uníssono e a trilha sonora tocaria um "tan, tan, tan" indicando um clímax. Infelizmente, não foi bem assim. O Capitão Gregade fechou ainda mais a cara, Alice Harback começou a rir de deboche e o Allan virou para seu advogado e soltou um "meu Deus", de novo orando.
    – Mas esse detetive é um idiota mesmo, como que vocês, da Polícia, aceitaram um sujeito desse para trabalhar? Eu enterrei meu marido, vi o corpo dele no caixão, como que esse sujeito fala que ele está vivo?
    – Como que o senhor pode fazer uma afirmação dessas, senhor Jerry Bocchio? – Perguntou o Capitão Gregade num tom ainda mais firme.
    Eu peguei as cartas que Allan havia me dado, retirei do maço a carta onde ele dizia que já estava no país e que iria para o hospital e entreguei ela nas mãos do Capitão Gregade.
    – O General Ivan Harback não morreu na guerra, ele desertou. Essa carta escrita por ele diz que ele havia acabado de chegar no país e que iria visitar Alice Harback no hospital.
    – Como você teve acesso a isso? – Perguntou Alice Harback, perplexa.
    – Responda apenas a mim, Jerry Bocchio. Isso não prova que ele está vivo. – Disse o Capitão Gregade, ignorando o espanto de Alice.
    – Eu sei, mas o paradeiro do corpo do General Ivan Harback é desconhecido. Ele não foi enterrado no Cemitério Militar, pois perdeu os direitos após desertar, o que significa que entre a saída dele e sua suposta morte, teve tempo do Exército fazer todo o trâmite de retirada de seus direitos. Além disso, o velório dele foi fechado, apenas a família mais próxima teve acesso ao seu corpo, mais ninguém. E também não existem registros do óbito dele no Exército, ele apenas é dado como desaparecido.
    – Jerry, Jerry. Eu dizia a você desde quando você trabalhava aqui. Você é muito criativo, mas você deixa ela afetar demais o seu trabalho. A sua história está muito mirabolante.
    – Isso mesmo! Prendam ele agora! – Gritou Alice, com uma voz firme e tom de autoridade.
    O grito e a postura de autoridade de Alice causaram um estranhamento no Capitão Gregade. Ele ficou encarando Alice, que logo voltou para sua pose de velhinha rabugenta normal.
    – Mas desta vez, eu vou te dar uma chance. Mangalvo, procure o nome do General Ivan Harback no sistema de controle de óbitos. Veja o que você encontra lá.
    – Sim, senhor! Agora mesmo!
    Thomas saiu da sala correndo, com um ar de confiança, foi até sua mesa e começou a olhar em seu computador. Ficou uns dez ou quinze minutos lá, ele sempre fazia questão de ser detalhista, imprimiu um papel e logo voltou correndo. Durante todo esse processo, Alice olhava tentando disfarçar sua apreensão, mas o suor frio e o tremor nas mãos indicava que ela estava acuada. Ao voltar pra sala, Thomas entregou o papel nas mãos do Capitão Gregade.
    – Senhor, o sistema de controle de óbitos não tem registro do General Ivan Harback.
    – Estranho, será que foi um erro no sistema?
    – Eu vasculhei várias vezes, senhor.
    – Senhora Harback, tem uma explicação que gostaria de dar?
    Os olhos de todos se voltaram para Alice, que agora não tinha mais como esconder seu medo.
    – Nós... Cremamos ele.
    – Mesmo assim, isso estaria constando aqui.
    – É que... Nós... Jogamos suas cinzas no mar.
    O Capitão Gregade foi ficando mais desconfiado ainda das reações de Alice, foi aí que eu aproveitei:
    – Capitão, porque o senhor não solicita a presença da família Harback para depoimento? Eles devem saber de algo que a senhora Harback não sabe. – Joguei verde pra colher maduro.
    – Bom, acho que vou ter que seguir sua sugestão, Jerry. Mangalvo, vá agora...
    – Não ouse incomodar minha família! – Interrompeu Alice, em tom ameaçador.
    – Senhora Harback, acho que a senhora não está compreendendo totalmente o que está se passando. O detetive Jerry Bocchio está me trazendo provas de que seu marido ainda está vivo depois de ter desertado de uma guerra. E as evidências que pegamos aqui estão fazendo esse caminho parecer ainda mais possível. Se alguém de sua família estiver sabendo de algo e escondendo o paradeiro dele, isso pode incorrer em muitos crimes. Se não for verdade, temos que eliminar essa teoria. Então seria bom chamarmos sua família aqui também.
    O Capitão Gregade virou-se para Thomas de novo para dar a ordem quando Alice, desesperada, levantou num movimento brusco da cadeira e interrompeu com outro grito, só que agora com uma voz muito mais grossa:
    – Não! Eu confesso!
    Alice Harback põe uma de suas mãos na cabeça, puxando seus cabelos para trás e tirando-os, revelando que seus cabelos eram, na verdade, uma peruca. Depois disso puxou a pele de seu rosto, revelando que era uma máscara de maquiagem. Após isso, com a peruca em uma mão e a máscara na outra, de cabeça baixa ela, que agora parecia ser mais ele, disse:
    – Eu sou Ivan Harback!
    Todos os outros na sala, falaram um uníssono "ooooooh" e depois logo ouviu-se um "tan tan tan", que eu percebi que era o toque do meu celular indicando que eu estava sem crédito.
    – Hehehe, desculpa aí pessoal, esqueci de colocar o celular no silencioso... Wow! Como é que é?
    – Ivan Harback! Acho que o senhor nos deve muitas explicações. – Disse o Capitão Gregade, ainda perplexo com a situação.
    – A Alice nunca se curou, ela morreu no hospital mesmo. Ela não deixava ninguém visitá-la porque eu estava lá com ela e ela tinha medo que alguém me visse e chamasse as autoridades. Tudo isso foi ideia dela, ela não queria que eu fosse preso depois de passar tanto tempo na guerra, então, antes de morrer, ela falou para eu assumir a identidade dela até que eu conseguisse limpar meu nome no Exército.
    – Como o senhor quer que acreditemos nessa história, General?
    – Primeiro, por favor, não me chame mais de General, não presto mais serviços ao Estado, nem quero prestar mais. Segundo, eu tenho uma gravação feita por ela enquanto estava no hospital.
    Ivan puxou o celular e mostrou um vídeo salvo. Nele, a verdadeira Alice Harback, bem fraca, falava com um pouco de dificuldade para a câmera:
    "Olá, eu sou Alice Harback, se meu marido está mostrando esse vídeo a você, é porque você deve ter descoberto nosso combinado. Eu autorizei meu marido a assumir minha identidade para que ele não seja preso. Eu prometo que quando ele conseguir arrumar a situação dele junto ao Exército, ele vai revelar toda a verdade. Mas eu não quero que ele fique longe mais da nossa família."
    Sua cabeça explodiu agora? Porque a minha, sim. Quer dizer que o doido do Allan tinha razão quanto à Alice ser um homem disfarçado? Só que é ainda mais doido porque o homem é o marido dela. Após o vídeo, Ivan continuou:
    – Eu desertei e voltei porque Alice tinha parado de responder minhas cartas. Então fiquei preocupado que pudesse ter sido o câncer. Mas quando cheguei no hospital, ela tinha acabado de dar entrada, o que significa que ela só não estava respondendo minhas cartas mesmo.
    Nessa hora eu fiquei incomodado com algo. Era um momento de revelação de verdades, eu tinha que falar outra coisa que eu havia percebido. Além disso, eu queria um clímax pra mim:
    – Ela não estava respondendo as cartas porque teve um caso com Allan Tresekos.
    – O quê?
    OK, OK, fiquei empolgado e falei demais. Ivan e Allan estavam querendo me matar e o Capitão começou a falar o clássico "ai, meu Deus" dele. Mas, já que eu tinha começado, né?
    – É, né? É que ela não respondia porque o Allan interceptava o rapaz que entregava as cartas e pegava as cartas pra ele. Percebi isso porque as datas de umas cartas eram anteriores à entrada de Alice no hospital, e o Allan me disse que só fez isso depois, então a conta não fechava. Além disso, Allan sabe muitos detalhes da vida dela, inclusive jeito de andar, de maquiar etc. Mas não sabia o nome do cachorro da família, já que ele não me avisou sobre isso no enterro do Jack, o que indica que ele era íntimo dela, não da família, como ele alegava. Também tem o fato do pessoal do salão de beleza ter reconhecido o Allan e tratado ele como íntimo da Alice. E se você somar isso ao hábito dele de ficar visitando a Alice quando ela estava sozinha em casa, né? Hehehe.
    – Allan Tresekos, seu enxerido, desgraçado! É por isso que você me enchia o saco me mandando mensagem?
    – Eu... Gostava do bolinho de chuva.
    Isso virou uma novela mexicana, né? Depois dessa fala de Allan, um silêncio sepulcral tomou conta da sala. Allan e Ivan me olhavam com vontade de me matar. O Capitão Gregade, depois de perceber isso virou pra mim e disse:
    – Jerry, pra sua segurança, é melhor você ir embora. Mangalvo, acompanhe ele pra evitar mais problemas.
    Enfim, esse foi o meu caso mais estranho até agora. Ivan Harback está respondendo na justiça por falsidade ideológica e ocultação de cadáver, por ter escondido Alice Harback. Allan Tresekos está enfrentando um divórcio e ainda teve todo o caso dele com Alice vazado na internet pela ex-mulher dele, que tava com raiva, viu?
    Quanto a mim, eu não ganhei todo o dinheiro que esperava, afinal eu expus o meu cliente, né? Coisas que acontecem. Mas sigo fazendo o meu trabalho esperando que esse caso me dê mais visibilidade pra eu poder dar a entrevista na frente da Padaria Nova Caledônia.
    Só sei de uma coisa: se eu ainda tivesse na Polícia, esse caso nunca teria chegado até mim.
  • Jerry Bocchio — Detetive Particular – Capítulo I: O caso

    Meu nome é Jerry Bocchio, trabalho como detetive particular. Os clientes que vêm até mim costumam me mandar casos que a polícia rejeita por achar que não tem importância. Porém, todos os casos têm alguma importância: furtos de lojas, gatos de água, luz ou internet, plágios entre outros.

    Naquele dia não foi muito diferente. Estava eu, sossegado em meu escritório, quando um homem aparentemente muito rico entrou na minha sala. Ele estava um pouco assustado, talvez pela luz baixa que eu deixo no meu escritório — eu vejo nos filmes que isso passa uma boa impressão ao cliente.

    Após se sentar na cadeira em frente à minha mesa, ele logo começou a falar:

    — O senhor é Jerry Bocchio?
    — Quem é que me pergunta?
    — Meu nome é Allan Tresekos.

    Allan Tresekos é um importante empreiteiro no país. Dono de muitas empresas que mexem com construção civil.

    — O que um homem como o senhor faz aqui no meu escritório?
    — Infelizmente, a polícia não acredita no meu caso.Estão pensando que estou louco. Então fiquei sabendo de seus trabalhos e me interessei.
    — Conte-me mais.
    — Eu desconfio, aliás, desconfio não, tenho certeza de que uma senhora que frequenta mesmo clube que eu é, na verdade, um homem disfarçado.
    — Opa, Opa! Pode parar por aí! No meu escritório não tem espaço pra preconceito!
    — Como é?
    — Poxa vida, senhor! Estamos no século XXI! Existem mais de dois gêneros, atualize-se!
    — Não é nada disso que eu estou falando, detetive! Eu conheço essa senhora desde quando eu era criança. Só que de uns tempos pra cá eu percebo algo diferente na atitude e na aparência dela.
    — Aaaah! Então tá, pode continuar.

    Para continuar a ouvir, peguei um cigarro e comecei a dar um trago. O problema é que logo depois do primeiro trago eu comecei a tossir demasiadamente.

    — Está tudo bem, detetive?
    — Não, não (cof)... Tá tudo bem (cof)! É que eu não fumo (cof, coooof).
    — Se você não fuma, por que pegou esse cigarro?
    — É que causa uma boa impressão pra um detetive (aaaa-ham). O senhor não vê isso nos filmes (cof, cof)? Mas pode continuar a história (aaaa-ham).
    — Certo... Então, o nome dela é Alice Harback, ela é uma amiga da minha família. Eu estou preocupado porque ela é viúva do General Ivan Harback. Talvez algum inimigo antigo dele tenha aparecido e...
    — Atchim! Atchim!
    — Tossir por causa de cigarro eu vejo muito, agora espirrar, aí é nova.
    — Ai... É que fumaça de cigarro ataca a minha rinite. Mas não se preocupa não porque eu tenho um antialérgico aqui na minha gaveta.
    — Você toma antialérgico assim? Tem a receita pelo menos?
    — Ué, pra que eu preciso de receita se eu posso comprar um pronto na farmácia?
    — Meu Deus, eu não acredito que ouvi isso!
    — Além do mais, deve ser muito caro comprar os componentes e os frascos pra fazer...
    — É receita médica que eu tô falando! Aquele papel que o médico te dá autorizando você a comprar um remédio e instruindo como tomar.
    — Aaaah! É receita o nome disso? Caramba! Pra que dar o mesmo nome, né? Já pensou se a indústria da confeitaria descobre isso? Pra comer bolo, você só vai poder se tiver receita assinada por um confeiteiro. Gente, isso ia ser...
    — Você vai ouvir a história ou não, detetive?
    — Tá bom, Tá bom! Desculpa! Pode falar.

    De fato, a história dele parecia muito maluca mesmo. Ele acreditava que um velho inimigo do General Ivan Harback havia matado Alice Harback e assumido o lugar dela na família para completar sua vingança. Um chapéu de alumínio cairia bem na cabeça desse homem.

    Mas minha intuição, ah, minha intuição, me dizia para pegar o caso. Bom, talvez não fosse tanto minha intuição assim, mas a minha ganância disfarçada, já que era um caso que envolvia a alta sociedade. Mas ouvi minha intuição falando que a voz da intuição que eu ouvi era a minha intuição de verdade e resolvi aceitar o caso. E minha intuição, ah, minha intuição, essa raramente errava.

    O plano era o seguinte: eu iria com Allan até o Clube Cerejeiras na festa de aniversário de um dos membros. Allan diria que eu sou convidado da família dele. Eu, com meu conhecimento sobre a alta sociedade, tentarei sociabilizar com alguns membros pra não levantar suspeitas. Quando eu avistar a Senhora Harback, eu tentaria chegar perto para verificar algum ponto que corroborasse a suspeita de Allan.

    Tudo começou bem como o planejado. Allan veio me buscar em meu escritório, me levou a seu alfaiate para me emprestar um terno e de lá fomos ao clube. Allan me apresentou como Rafael van Treven. Logo chegou um outro frequentador do clube para falar com Allan.

    — Allan, meu amigo! Que surpresa ver você aqui no clube numa quarta feira! Por um acaso esqueceu de pagar a mensalidade e veio quitar a dívida? – Disse o sujeito com um ar completamente esnobe.
    – Não, Marcelo. Na verdade vim aqui para apresentar o clube a um amigo meu. Deixe-me apresentá-lo: Marcelo, esse é Rafael van Treven. Rafael, esse é Marcelo Rubino, dono da Alfaiataria Rubino.

    Chegou a minha hora de brilhar na atuação.

    – Ah, claro, a Alfaiataria Rubino! É um prazer conhecê-lo!
    – O prazer é todo meu! Me diga, van Treven, pelo seu sobrenome, suponho que sua família veio da Europa, correto!
    – Claro! Meu avô era um comerciante muito conhecido na Suécia.
    – Suécia? Pensei que sobrenomes com van vinham da região da Holanda, Bélgica ou próximo.
    – Aaaah! É que ele morava perto da fronteira.
    – Suécia fazendo fronteira com a Holanda?

    Eu não sabia que os ricos gostavam tanto de geografia. Se eu tivesse suspeitado disso na infância, com certeza tinha me esforçado mais nessa matéria e hoje teria dinheiro. Pra minha sorte, avistei Alice Harback sentada a uma mesa perto da janela, completamente isolada e mexendo no celular. Deixei Marcelo e Allan, que por algum motivo estava com as mãos no rosto dizendo "meu Deus", e fui até uma mesa ao lado de Alice.

    Alice pôs o celular no ouvido e começou a falar. O bom de clubes de gente rica é que eles falam muito baixo, então, se eu quiser me concentrar na conversa alheia, é só eu direcionar minha audição, que é muito boa, por sinal. Pra se ter uma ideia, eu consigo localizar uma barata no meu escritório apenas ouvindo seus passos, assim eu consigo fugir mais rápido.

    Alice falava com muita veemência ao telefone:

    – Sim, Jack já foi sacrificado. Não se preocupe, eu sei como ele fazia bem pra família, fiz questão que ele não sofresse mais. Diga às crianças que ele foi para um lugar onde não vai acontecer nada de ruim a ele. Vamos enterra-lo assim que essa reunião do clube acabar. Eu te passo o endereço.

    O maluco do Allan estava certo, ou quase! Aquela mulher havia matado um membro da família e agora queria mentir sobre seu fim. Como foi fácil, eu só precisava pegar o endereço do cemitério onde ocorreria o velório e desmascarar aquela velha na frente de todos.

    O velório aconteceu no Cemitério São Francisco de Assis. Eu chamei Allan Tresekos para vir comigo para testemunhar o caso sendo solucionado. Allan estranhou e disse que aquele cemitério não era o cemitério que a Família Harback costumava enterrar seus membros. Segundo Allan, como Ivan Harback era um oficial do Exército, eles tinham direito a um cemitério exclusivo. Rapaz, agora que eu estou aqui falando com você, eu tô percebendo. Como esse Allan sabe tanto detalhe dessa família?

    Chegamos ao cemitério bem na hora que haviam enterrado o caixão. Os dois netos de Alice Harback, Enzo e Rebeca, choravam em volta da avó. Alice mantinha sua feição seria, com o queixo erguido. Mal sabia ela que eu iria derrubar aquele queixo – no sentido de deixar surpresa, sem violência, ah, você entendeu.

    – Alice Harback, parada! A senhora está presa!

    – Você pode dar voz de prisão, detetive? – perguntou Allan, estragando minha entrada.

    – Posso saber porque estou sendo presa?

    – Pelo assassinato de Jack Harback!

    – Você matou o Jack, vovó? – perguntou Rebeca.

    Agora eu havia pegado ela de jeito, no bom sentido! Então continuei dando seguimento ao meu excelente trabalho de detetive:

    – Sim, ela matou Jack Harback! Ele sabia de algo que ela queria esconder e então ela sacrificou Jack Harback...

    – Pare de chamar ele de Jack Harback! O nome dele era só Jack – Alice me interrompeu de um modo desesperador.

    – Ah, é? Você não considerava ele da família?

    – Não é isso, seu idiota! Jack era o nosso cachorro! – Alice me respondeu apontando para uma placa com o nome do cemitério que dizia: "Cemitério de Animais São Francisco de Assis" – Eu sacrifiquei ele porque ele estava muito doente, mas não queria dizer isso para meus netos! Foi você quem trouxe esse idiota, Allan?

    Allan não conseguia falar outras palavras que não fossem "ai meu Deus". E eu havia cometido um erro. Um silêncio sepulcral tomou conta do ambiente, quando resolvi falar:

    – Aaaah! Bom... Talvez esse cachorro tinha uma segunda família.

    E agora? Por causa de um erro, me expus à investigada. Agora ela sabe que tem um detetive brilhante no pé dela e vai fazer de tudo para atrapalhar minha investigação.

    Continua...
  • Jerry Bocchio e a Ameaça no Reality - Capitulo IV: A Área VIP

    Após um dia longo de conversas com os participantes do reality, estava eu, no dia seguinte, me arrumando de um modo a parecer bem sucedido, mas respeitando o clima do local. Não dava pra ir de terno pra lá. Anne Gonzalo e eu combinamos de nos encontrar no restaurante, na área comum, para repassarmos nossos personagens para entrar na área VIP, onde o representante do patrocinador do reality gosta de frequentar. Nessas horas me faz falta um distintivo, com ele eu só entraria nos locais sem precisar bolar histórias.
    Ao sair do quarto, eu estava trancando a porta quando vi um vulto que parecia se esconder na parede do corredor que cruzava com o corredor onde ficava meu quarto. Minha intuição me chamou a atenção, então fui andando até lá. Pra você ver, né? Todo mundo fala da burrice dos mocinhos dos filmes de terror, mas acaba fazendo igual.
    Esgueirei a cabeça pra ver e era o Roninho. Ele estava com uma cara de criança quando é pega cabulando aula. Um pouco nervoso e parecia estar se escondendo de mim. Por que isso? Eu tive que falar:
    – Roninho, está tudo bem?
    – Detetive! Tá... Tudo bem! Só estou passeando.
    – Passeando dentro do hotel?
    – Não, dentro do hotel não! Eu tô saindo do hotel, na verdade. É que eu... Preferi usar as escadas... Manter a saúde, sabe? Exercícios!
    Roninho parecia muito nervoso. Ele costuma falar gesticulando muito, mas, dessa vez, estava com as mãos nos bolsos da calça.
    – Você tá bonitão, detetive! Não está paquerando nenhuma das participantes não, né?
    – Não! Não é isso não! Isso aqui é porque... Eu não posso falar o porquê agora.
    – Tem a ver com a investigação?
    – Sim! Só o que posso falar por enquanto.
    – Bom, boa sorte pra você então! Eu vou continuar meus exercícios hehehe.
    Ufa! Ainda bem que ele não pediu pra vir comigo. E que medo é esse de eu paquerar uma das participantes? Talvez porque ele queira que o programa dê certo, mas uma das participantes disse que não estava afim de começar um relacionamento no programa. Então, se for pensar assim, não vai dar certo.
    Continuei olhando o Roninho descendo as escadas. Ele descia devagar e virando a cabeça em minha direção com cara de preocupação. Qualquer um com um pouco de noção diria que ele estava fazendo algo suspeito. Mas como eu não queria sair do planejado, só esperei ele sair da minha vista para seguir meu rumo. Quando isso aconteceu, fui até o elevador.
    Cheguei ao restaurante e vi que Anne ainda não tinha chegado. Então fui até uma mesa da área comum pra esperar. Nosso disfarce era que nós seríamos um casal tentando fortalecer o relacionamento com uma viagem. Ela havia me dito que o restaurante contratou um profissional que sabe falar português excepcionalmente pra recepcionar o pessoal da emissora. Menos mal que eu não vou precisar falar em outras línguas de novo.
    Enquanto esperava Anne, vi a influencer Jessy Lins entrando na área VIP. Dez minutos depois, Roninho também entrou, parecia bem mais tranquilo do que parecia quando estava no hotel. Nenhum deles passou por mim, mas, ainda assim, isso não é muito legal, pode estragar o disfarce.
    Alguns minutos depois, Anne apareceu. Ela estava... radiante. Os cabelos pretos dela estavam soltos pela primeira vez desde quando a conheci, ela andava com mais leveza, e o vestido vermelho dela chamava a atenção, não por revelar demais, que não era o caso, mas pela beleza dele e como ele se encaixava perfeitamente nela. Ela me localizou logo e foi até a mesa onde eu estava.
    – E aí, detetive? Pronto pra colocar o plano em ação?
    – Hum... Acho melhor esperar um pouco.
    – Ah, por quê?
    – Aquela influencer e o Roninho estão lá dentro.
    – E o que é que tem?
    – Se você está disfarçado, não é bom encontrar gente que te conhece.
    – É, faz sentido. Mas, e aí? Vamos simplesmente esperar eles irem embora?
    – Bom, não dá pra ficar muito tempo aqui, né? Vamos esperar um pouco e torcer pra eles saírem. Se não saírem, acho que vamos ter que tentar.
    Anne se sentou à minha frente um pouco contrariada. Parece que ela estava bem ansiosa para dar continuidade à investigação. Eu já havia reparado isso nela, a investigação parecia despertar nela uma empolgação. Então, eu resolvi perguntar:
    – Anne, pode me esclarecer uma coisa?
    – Sim, o quê?
    – Você não parece gostar muito do seu trabalho atual, por que continua então?
    Anne me encarou por alguns instantes e resolveu responder:
    – Ah, detetive! De fato, não é o trabalho dos meus sonhos.
    – Pode me chamar de Jerry mesmo. Já somos parceiros nesse caso.
    – Tá bom então, Jerry. Como eu ia dizendo, não é o trabalho dos meus sonhos, mas eu preciso passar por isso pra conseguir um destaque na carreira.
    – Mas você quer mesmo essa carreira?
    – Quero! Eu gosto de trabalhar com o audiovisual. Só não é bem isso. Essa futilidade, essa superficialidade desses realities e programas de celebridades, ter que lidar com gente que não está disposta a ideias novas, só o mais do mesmo, nada disso nunca me conquistou. Mas é como eu te falei, é um degrau que eu tenho que subir. Você nunca teve que passar por isso?
    – Bom, não sei se você sabe, mas eu já fui da Polícia. Eu gosto de ser investigador, sempre foi meu sonho. Mas, quando entrei pra Polícia, vi que não era bem como eu imaginava. Aqueles protocolos, formulários, arquivos... Eles me engessavam, acabavam com a minha criatividade. Então eu pedi pra sair de lá pra me tornar detetive particular.
    – Nossa! Você nunca pensou em subir na sua carreira? Se tornar um tenente, um delegado, um capitão?
    – Quando eu entrei sim, mas eu percebi que eu teria que me submeter a muita coisa que não gosto e abrir mão de muita coisa que eu gosto pra isso. E eu iria subir pra quê? Pra continuar subindo? Pra mim não faz sentido. Tem uma coisa que eu falo pra todo mundo: eu só tento conquistar um prêmio se esse prêmio também me conquistar.
    – Olha, eu acho que não teria essa coragem de desistir da minha carreira por mera convicção pessoal.
    – Mas eu não desisti dela. Você falou de subir degrau, não é mesmo? Então, eu só resolvi subir outra escada. Uma que não tenha paredes dos lados que me forçam a olhar só pra cima, entende? Uma que me deixe aproveitar cada subida de degrau, podendo olhar dos lados também pra apreciar a paisagem.
    Após essa minha última fala, Anne ficou apenas calada, me encarando por alguns instantes. Talvez eu deva ter dito algo que ela não tenha gostado, ou algo que a deixou pensativa, não sei. Confesso que fiquei um pouco desconfortável com a situação, não estou acostumado a receber esse tipo de olhar. Só que, por algum motivo, eu não conseguia pensar em nada pra falar também, minha mente parecia que tinha entrado no modo de descanso de tela. Então, eu fiquei apenas olhando pra ela de volta.
    O cenário ficou desse jeito até que eu ouvi algo na porta da área VIP. O nome Enzo Klozowicz havia sido citado. Enzo Klozowicz era o representante do patrocinador com quem eu queria falar. Segundo as informações passadas por Anne, ele é CEO da empresa de tecnologia Bytex. Essa empresa cria e distribui aplicativos de smartphones, dentre eles, tem aplicativo de namoro e rede social, isso explica a conexão entre um reality de namoro (se é que pode ser chamado assim) e uma influencer de cultura pop.
    Olhei para a porta e vi ele entrando na área VIP, ou seja, ele havia acabado de chegar. Anne também viu ele e me chamou a atenção:
    – Jerry, olha! É o patrocinador!
    – Eu sei, eu também vi. Será que isso dá mais tempo para esperar os outros dois saírem?
    – Não sei. E se eles estiverem lá justamente pra falar com ele?
    – Ai, caramba! Então eu acho melhor a gente entrar pra poder olhar.
    Ela concordou e nos levantamos. Anne segurou meu braço direito, entrelaçando o meu e o dela, como se fossemos um casal, e fomos até o funcionário na porta da área VIP. Chegando até ele, fiz a minha cara de rico que tanto funciona nessas horas.
    – Boa tarde, senhor. Eu gostaria de uma mesa para dois, por favor.
    – Pois não, qual é seu nome?
    – Meu nome é Ricardo Boladazzo.
    Se você quiser se passar por alguém rico, não fique dando detalhes de sua profissão ou suas propriedades etc. Ricos não precisam fazer isso, só o nome com uma palavra parecida com alguma língua europeia e confiança e firmeza na hora de falar. Sempre funciona.
    – Não tem o seu nome na lista, senhor Boladazzo.
    – Hehe! Como não? Eu sou aceito em várias áreas VIP, por que nesse restaurante não?
    – Me desculpe, mas é norma da casa.
    – Como assim, "norma da casa"?
    – Se não tem o nome na lista, não posso deixar entrar. Muitas pessoas gostam de se fingir de rico pra tentar entrar aqui. Fãs, paparazzi, investigadores...
    – Ora, mas que insulto! O senhor, por acaso, sabe quem eu sou?
    Beleza, reconheço que joguei a falsa carteirada nessa. Mas é porque eu fiquei desesperado com a irredutibilidade do funcionário. Só que antes de continuar, a Anne resolveu intervir:
    – Ricardo, não me diga que você esqueceu de fazer as reservas!
    Ela estava entrando no personagem. Resposta rápida, muito bom! Não entendi onde ela queria chegar, então só fui aceitando a proposta:
    – Querida... É... Não é bem assim!
    – Não é bem assim nada, Ricardo! Você nunca faz nada direito mesmo!
    – É que eu não sabia!
    – Ah! Eu devia ter ouvido a minha mãe!
    Foi então que o funcionário se assustou e tentou intervir:
    – Escute, senhora, não se exalte, por favor!
    – Não me exaltar? Já fazem quatro anos que eu estou casada com ele e esse elemento nunca faz nada direito! Ele já esqueceu duas vezes o nosso aniversário de casamento. Teve um aniversário da minha mãe que ele deu um aparelho TV Box!
    – Mas o pessoal da empresa disse que pegava todos os canais.
    – Você fica quieto aí! Vamos voltar pro hotel, de lá, eu vou ligar pro meu advogado.
    – Senhor e Senhora Boladazzo, esperem, por favor! Eu achei o nome de vocês aqui na lista.
    – Sério?
    – Sério? Digo... É sério mesmo! Hehehe! Foi uma brincadeira que eu combinei com ele, Rita! Eu combinei essa cena aqui com o nosso amigo, o...
    – Juan.
    – Juan!
    – Ah, Ricardo! Você e suas brincadeiras! Sempre tentando me fazer rir.
    – Me acompanhem, por favor. Vou levá-los até a mesa.
    Olha, a ideia da Anne deu certo mesmo! Ela tem talento, rapaz! O funcionário nos levou até a mesa, ajeitou a cadeira para Anne se sentar e, enquanto ia ajeitando a minha, ele disse ao meu ouvido:
    – Te entendo, Senhor Boladazzo, também já passei por isso. Vai dar tudo certo!
    O funcionário foi chamar o garçom para nós atender e saiu. Enquanto isso, eu fui reparando no lugar. A área VIP é bem diferente da área comum. Pra se ter uma ideia, tem uma parte coberta com algumas mesas para casais e algumas para grupos. Um bar bem extenso do lado esquerdo de onde ficam as mesas com alguns bartenders que ficam fazendo malabarismo com os drinks. E na frente um portão de vidro ornamentado com uma estrutura de metal bem grande que dá para o lado de fora, a parte descoberta, que tem até uma fonte.
    Eu comecei a vasculhar com os olhos em todo o lugar, mas não achei Enzo Klozowicz. Será que ele havia saído? Anne, pelo visto, percebeu a mesma coisa.
    – Jerry, você está vendo o Enzo Klozowicz por aí?
    – Não.
    – Eu também não estou vendo o Roninho. Será que eles estão na parte descoberta?
    – Não consigo ver tudo daqui. Acho melhor a gente ir até lá.
    Nós dois passamos pela porta de acesso à parte descoberta. Também não encontramos ele lá. Só que nós também vimos que tem uma outra saída do lado descoberto da área VIP. Só faltava eles já terem saído por lá.
    Quando estávamos voltando para nossos lugares, ouvi alguém chamando o meu nome. Era a Jessy Lins. Olhei para trás e vi ela correndo em nossa direção.
    – Detetive! Que coincidência você por aqui! Você está um gato desse jeito, hein? E a Anne também veio... Espera! Vocês estão... Num encontro?
    Anne e eu falamos um "não" sincronizado. Após isso, nos entreolhamos.
    – Não, Jessy Lins, a gente está assim pra conseguir entrar aqui.
    – Ai, detetive, pode me chamar só de Jessy mesmo. Não precisa ser formal comigo.
    – Tudo bem então. A gente só queria... Atchim! Atchim! Ai, tem alguém fumando cigarro aqui?
    – Cigarro, não. Tem só um pessoal com um narguilé alí do lado. Eu estava com eles.
    – Puts, então eu também sou alérgico a... Atchim! Fumaça de narguilé.
    – Jerry, você nunca falou dessa alergia. Tá tudo bem? – Perguntou Anne, parecendo preocupada.
    – Atchim! Tá tudo bem Anne! É só uma rinite mesmo. Eu só preciso pegar meu... Atchim! Antialérgico lá no quarto do hotel.
    – Hum, ela te chama de Jerry, né?
    – Qual é o problema? Olha, eu preciso levar ele de volta pro hotel antes que a reação dele piore.
    – Eu vou com vocês! Eu já estava indo pra lá mesmo.
    Fomos, então, para o carro em direção ao hotel. Eu estava na constrangedora situação de ficar entre as duas, Jessy e Anne, com um lenço tampando o nariz pra evitar cenas mais embaraçosas. Foi quando Jessy continuou a pergunta que fez no restaurante:
    – Então, se vocês não estavam num encontro, o que queriam lá?
    Anne vendo minha situação, resolveu responder:
    – Nós queríamos falar com o patrocinador. O Enzo Klozowicz.
    – Eu também fui lá pra falar com ele. Só que, enquanto eu começava a conversar, o Roninho apareceu e saiu com ele.
    Então foi isso mesmo o que aconteceu: os dois foram embora antes de nós chegamos. Só que uma dúvida surgiu, então fui perguntar, mesmo com o lenço no nariz:
    – O que você foi falar com ele?
    – Eu queria pedir pra sair do reality. Estou meio desconfortável em me imaginar num reality de pegação. Além disso, essa investigação está atrasando o início e eu preciso voltar a fazer conteúdo pros meus seguidores, já que o contrato não deixa eu fazer isso aqui... Quer dizer, não que eu esteja criticando seu trabalho... Jerry.
    – Desde a primeira conversa que a gente teve, você demonstrava que já não estava muito afim de participar, por que aceitou no começo então?
    – Ah, uma mistura de várias coisas: eu estava com raiva do meu ex-namorado, o patrocinador me indicou e eu achei que ia ajudar a me divulgar mais. Além disso, o Roninho é um dos membros do meu fã clube. Eu achei que ele ia me dar uma ajuda.
    – O Roninho é seu fã?
    – É! Mundo pequeno, né? Ele ficou bem surpreso quando eu apareci.
    Foquei na pessoa errada. Era melhor perguntar mais algumas coisas para o Roninho. O modo como ele agiu estranho hoje, bem evasivo, juntamente com essas informações me faz crer que ele tem algo por aí.
    Quando chegamos ao hotel, eu fui subir e Anne veio comigo, ainda um pouco preocupada. Eu tentei tranqulizá-la, mas sem muito efeito. Jessy veio subindo junto, parecia que ela estava nos inspecionando.
    Abri a porta do meu quarto, entrei e tomei meu antialérgico que eu deixei no gaveteiro ao lado da cama. Virei para as duas, que ficaram na porta e elas estavam paralisadas, assustadas por algum motivo.
    – Anne, Jessy, podem se acalmar, é só uma rinite.
    Elas me ignoraram e continuaram olhando assustadas para trás de mim, quando me virei, vi que tinha uma frase escrita em vermelho com letras enormes na parede do quarto: "Jerry Bocchio, caia fora!"
    Que droga, cara! Agora eu também sou o alvo da ameaça. Significa que quem ameaçou está por perto e sabe o que estamos fazendo. Ou seja, ele sabe mais sobre eu do que eu sobre ele. É hora de eu começar a me preparar para ser mais efetivo na minha investigação.
    Continua...
  • Jerry Bocchio e A Ameaça no Reality - Capitulo V: Colocando o Caderno em Prática

    Então agora tem uma ameaça para mim na parede do quarto do hotel onde eu estou hospedado em Aruba. O pretendente a assassino está junto com a produção, ou fazendo parte dela, ou disfarçado entre eles.
    Eu fui em direção à parede onde estava escrita a ameaça e cheguei mais perto para ver. Passei o dedo em uma parte e a tinta pegou no meu dedo. O que quer dizer que a tinta está fresca ainda. O que quer dizer que o sujeito ainda está por perto. Uma coisa que achei estranha é que a tinta tinha um cheiro doce.
    Virei de novo para Anne e Jessy, que estavam na porta do quarto e pedi pra elas entrarem e fechar a porta. Anne fechou tremendo. Ela estava aflita. Eu não aguentei ver o estado dela e fui tentar acalmá-la. Fui até ela, segurei seus ombros e disse, olhando de frente pra ela:
    – Anne, senta um pouco.
    – Jerry, eu esqueci que a gente está investigando um crime. Eu fiquei empolgada em participar, achei esse negócio de investigação e de disfarce legal, mas esqueci que as nossas vidas estão correndo perigo!
    – Não, Anne! Olha, a ameaça tá só citando o meu nome. Sou só eu quem sou o alvo.
    – Mesmo assim, eu também não quero que nada aconteça com você. É melhor eu chamar a Polícia.
    – Se você acha melhor, tudo bem, só tenta se acalmar antes.
    Enquanto Anne e eu conversávamos, eu ouvi a Jessy me chamando:
    – Jerry, isso aqui é batom.
    – Olha, Jessy, a situação agora não é boa pra vender cosméticos.
    – Não, Jerry! Quem escreveu isso aqui usou batom pra escrever. É o batom que eu uso, inclusive... Bom, parece ser o mesmo por causa do cheiro dele.
    Por isso que o cheiro estava doce então. Virei para ela e ela estava na parede olhando a mensagem. Só que tem uma coisa, Jessy disse ser o mesmo que ela usava. Não poderia ter sido ela a ter escrito, não?
    – Jessy, você disse que esse é o mesmo batom que você usa?
    – É, parece, a marca que eu uso é a única que tem perfume de rosas. Eu também faço publis dessa marca nas minhas postagens.
    – Que estranho!
    Jessy desconfiou das minhas perguntas e ficou assustada. Puxou o batom dela de dentro da bolsa, me mostrou e disse:
    – Jerry, não fui eu quem escreveu isso. Olha o meu batom está inteiro aqui comigo. Eu estava no restaurante esse tempo todo, vocês me viram lá.
    Bom, com relação a ela estar com o batom dela na bolsa, só isso não comprova, ela poderia muito bem usar outro, mas não falei nada. Afinal, tinha algo desconexo se fosse Jessy a pessoa que escreveu. Ela não parecia tão burra a ponto de se incriminar desse jeito, muito pelo contrário. Ela também não pediria pra me acompanhar até o quarto e não daria essa informação sobre o batom. Será que alguém estaria tentando incriminar ela?
    Foi então que eu comecei a me lembrar do Roninho. Ele estava extremamente apreensivo na parte da manhã, perto do meu quarto. Quando eu vi ele entrando no restaurante, ele já estava tranquilo, numa questão de meia hora. Além disso, Roninho fazia parte do fã clube da Jessy e... Opa! Foi aí que eu me lembrei que, em nenhum momento, eu interroguei ele.
    – Anne, não ligue pra Polícia ainda!
    – Mas, Jerry...
    – Eu só quero ter mais uma conversa antes.
    Uma hora depois, Roninho apareceu na porta do meu quarto um pouco apreensivo e com as mãos nos bolsos. A porta estava quase toda aberta, então, ele entrou. O quarto estava só com a Jessy chorando sentada na cama. Ele olhou a escrita na parede, olhou a Jessy chorando, chegou até ela e disse:
    – Poxa vida! Isso tá ficando cada vez mais perigoso!
    Jessy, ainda chorando, respondeu:
    – Você não sabe do pior, Roninho. Quem fez isso tá tentando me incriminar!
    – Incriminar? Como assim?
    – Quem escreveu isso usou o mesmo batom que o meu, até a cor é igual.
    – Deve ser só coincidência, Jessynha! Onde está o detetive?
    – Ele e a Anne foram chamar a Polícia pra vir aqui me prender.
    Foi então que Roninho perdeu toda a pinta dele. Ele se sentou do lado de Jessy e começou a falar mais alto:
    – O que você tá fazendo aqui ainda, Jessynha! Dá o fora daqui!
    – Não! Eu vou provar que sou inocente! Foi por isso que eu pedi pra você vir aqui. Você me acompanha direto na internet, você pode servir de testemunha. Me ajuda, por favor!
    – Não, Jessynha! Aquele detetive é burro demais, isso não vai adiantar. Vem comigo, vamos fugir daqui!
    – Não!
    – Vem! Eu te abrigo na minha casa, no Brasil, até isso passar.
    – Não! Eu sou inocente! Eu não vou fugir!
    – Aquele detetive é burro demais! Onde já se viu chegar numa conclusão dessas? Só porque o batom é o mesmo, significa que você é culpada?
    – Pois é, Roninho! Estão tentando me incriminar!
    – Não! Também não é isso! Quem escreveu isso, na verdade, está querendo fazer outra coisa.
    Foi então que eu saí de trás da porta, fechei ela e tranquei. Então eu falei, assustando o Roninho, que deu um salto da cama:
    – É mesmo, Roninho? O que ele queria?
    – Detetive!
    Roninho, que já tinha perdido a pinta de bonzão dele, agora começa a se sentir acuado. Ele encosta na parede como um dos personagens secundários dos filmes de terror prestes a terminar seu papel. Então, eu vou continuando:
    – Me ajuda aí, cara! Eu sou burro demais, não sou bom em suposições.
    – Detetive! Eu... Não... Queria dizer isso. Eu tava nervoso.
    – Bom, talvez a intenção não seja mesmo de incriminar a Jessy, mas de levar ela embora fazendo ela acreditar que tem alguém tentando incriminá-la, só pra fazer o papel de herói.
    – Espera aí, você tá desconfiando de mim?
    – Como você tem tanta certeza do que o mensageiro aí queria?
    Então Roninho começa a forçar um riso malicioso, tira as mãos dos bolsos e as levanta, me mostrando os dedos.
    – Ah, detetive! Você não pensa direito mesmo, né? Olha só, minhas mãos não têm marca de batom! Você não tem provas de que fui eu.
    Ah, como eu amo quando o interrogado vai direto pro "você não tem provas"! É quase uma confissão. Me facilita muito o trabalho. Isso colaria se eu ainda estivesse na Polícia, com todos aqueles protocolos, mas agora não. Eu olhei pra Jessy, que trocou o choro por um sorriso confiante e perguntei:
    – Jessy, em algum momento eu cravei que quem escreveu isso estaria com as mãos sujas?
    – Não, Jerry!
    – Pois é, né? Até porque, depois de todo esse tempo, ele teria muitas oportunidades de lavar as mãos, no hotel, no restaurante, etc. Né não?
    – É! Se ele não lavasse as mãos, ele sim seria burro, hahaha!
    – Além do mais, eu nem sugeri que ele sujou as mãos ao escrever, o que significa que, se foi o Roninho quem escreveu, ele tá quase me dizendo que ele sujou as mãos no processo e lavou durante o tempo.
    Roninho se irrita com o meu deboche e começa a gritar:
    – Qual é, detetive! Eu já disse que você não tem nada contra mim! Você tá tirando essa teoria do seu...
    – Opa, opa! Então vou te dar uma chance de limpar o seu nome, tá? Você ficou o dia inteiro com as mãos nos bolsos, né? Sabe como é a relação entre batom e roupa, só um toque já deixa manchado. Desvira eles aí, se estiverem limpos, pode ir.
    Ele andou até eu, apontou o dedo na minha cara e começou a falar:
    – Eu não vou obedecer um detetivezinho idiota que investiga casos de velhos cornos. Eu sou o diretor dessa emissora, eu faço o que eu quiser! Se você quiser ver meus bolsos, vai ter que pegar um mandato!
    – Eu não sou da Polícia, não tenho que me meter com essa papelada.
    – Então, passar bem! Abra essa porta, agora!
    O problema é que Roninho estava tão nervoso que não percebeu que, enquanto ele passava pela cama pra me dar essa encarada, Jessy desvirou um dos bolsos dele e... Batata! Todo manchado de vermelho. Eu só sorri e apontei para baixo. Ele olhou e virou para Jessy, todo decepcionado:
    – Jessynha, eu achei que a gente estava no mesmo time!
    – Ah, se toca! Você tem a idade do meu pai! Até parece que eu ia querer ficar com um mimado de meia idade!
    Agora era hora de eu finalizar:
    – Então, acho que você deve explicações, Ronald.
    Então, Roninho fica revoltado com os acontecimentos, e acaba respondendo agressivamente:
    – Então tá! Você quer a verdade? Foi eu quem mandou as duas ameaças. Eu não queria que a Jéssica participasse dessa temporada. Era eu quem deveria ser o próximo namorado dela. Mas, não! Aquele patrocinador idiota insistiu na participação dela e a produção aceitou, então eu mandei a primeira ameaça pensando que iam desistir da gravação. Mas, não, de novo! Mandaram um detetive de araque pra investigar. E o que é pior, a Jessica ficou se engraçando com ele!
    – Se engraçando comigo? Mas eu não lembro dela contando nenhuma piada.
    – Cala essa sua boca! Como ousam dizer não para o Roninho? Minha família construiu essa emissora! Ninguém diz não pra mim!
    – OK! Acho que agora é uma boa hora pra chamar a Polícia.
    – Hahahahaha! E com base em quê, detetivezinho? Eu posso me livrar dessa prova agora e negar tudo o que eu disse. Eu tenho advogados. É, isso mesmo! Advogados, no plural. E a única coisa que você tem é uma calça manchada e uma confissão com só uma testemunha suspeita.
    – É verdade isso, Anne?
    Foi então que Anne surgiu de debaixo da cama segurando o celular e mostrando que tinha gravado tudo. Bom, ficou bem claro que a gente combinou isso tudo, né?
    O problema é que isso ativou o lado primitivo de Roninho, ele tentou fugir. Ele me empurrou contra a porta, me pegando de surpresa, o impacto machucou minhas costas. Enquanto eu estava caído no chão, Roninho ficava tentando colocar a mão no bolso onde eu tinha guardado a chave para roubá-la.
    Mas, como Jessy disse, ele é um homem de meia idade filhinho de papai, então eu consegui me recuperar e segurei os braços dele pra não deixar ele roubar a chave. Dei uma rasteira nele e consegui derrubá-lo no chão com facilidade. Então, coloquei algemas nele só pra evitar dele fazer mais besteira. Como foi ele quem veio descontrolado pra cima de mim, eu posso usar as algemas.
    Enfim, a Polícia veio e levou ele embora. Ele seria mandado para o Brasil. Anne, Jessy e eu tivemos de ir também para prestar depoimento. Anne deixou as instruções para a diretora substituta e saiu com o reality em gravação. Eu, sinceramente, não tive a mínima vontade de assistir.
    Roninho responde na justiça por ameaça e lesão corporal dolosa, eu acho que ele vai se safar, mas que ele virou notícia no Brasil inteiro, ah, isso ele virou. Ele foi desligado da Glamour TV e está sendo processado pela Jessy Lins.
    E junto com isso eu também virei notícia! Só que dessa vez, não era mais em sites de fofoca! Tomara que as coisas melhorem a partir de agora.
    Só que eu sentia que faltava alguma coisa, fiquei sem saber o que era por alguns momentos quando me veio as lembranças de quando Anne e eu trabalhamos juntos na investigação. Foi aí que percebi uma coisa: eu meio que me apaixonei pela Anne. Sabe como é, né?
    Eu tentei ligar no contato dela que ela me passou quando veio me contratar. Era o contato do trabalho, mas eu não tinha outro. Porém, ela não atendia. O assistente dela dizia que ela não apareceu lá desde quando voltou.
    Na noite após o meu depoimento, estava eu, tomando meu café em uma das mesas na Padaria Nova Caledônia, um pouco chateado, sabendo que não iria mais ver a Anne, quando eu ouvi o meu nome sendo chamado. Olhei para trás e era a Jessy.
    – Jessy, que mundo pequeno!
    – Oi, Jerry! Eu vim aqui me despedir de você. O seu amigo policial, Tom, me disse que você gosta de tomar café aqui.
    – Esse Tom! Uma hora ele vai falar meu paradeiro pra um inimigo.
    – Hahaha! Enfim, obrigada por me ajudar e por me deixar ajudar, Jerry! Aquela jogada foi muito inteligente.
    – Foi uma que eu tinha anotada na página 115 do meu caderno. Tem anotações de como montar uma armadilha pro investigado escorregar. Tá vendo como ele é útil?
    – É mesmo! Vou começar a fazer um também. Tchau, Jerry! Que você e a Anne sejam felizes!
    – Eu não estou com a Anne.
    – Não? Mas eu vi como vocês dois combinam. O modo como vocês falaram no quarto do hotel, parecia que vocês estavam namorando já.
    – É, acontece, né?
    Jessy abriu um sorriso, puxou uma cadeira da mesa e se sentou à minha frente.
    – Esquece ela! Deixa eu tomar um café com você aqui pra te ajudar a animar.
    Nós ficamos conversando durante umas horas, quer dizer, quando ela não estava verificando o celular. Como ela é influencer, talvez ela precise mesmo ficar mexendo direto, né? Ela falava bastante de festas e se eu gostaria de participar com ela. Eu disse que pensaria, mas na verdade, não sou muito do tipo festeiro. Prefiro ir em festas dos meus amigos mesmo. Além disso, o objetivo dela não foi conquistado, eu não consegui esquecer a Anne nesse tempo.
    No dia seguinte, eu fui até a sede da Glamour TV pra receber o Pix. Quando saí da sala do responsável, olhei para o lado e vi a Anne andando em minha direção. Ela estava com as roupas que costuma usar no trabalho, só que com os cabelos soltos, dessa vez. Ela estava tirando o cordão com o crachá dela e jogando na lixeira. Eu, meio desengonçado, chamei ela:
    – Anne!
    Ela não estava olhando em minha direção. Quando ouviu eu chamando, parou e me olhou na hora.
    – Jerry!
    Eu fui andando até ela.
    – Anne... Eu... Tentei te ligar esses dias e diziam que você não estava.
    – Eu saí da cidade um pouco pra começar um projeto. Você está aqui por quê?
    – Eu vim receber meu dinheiro pela investigação.
    – Já está saindo?
    – Sim.
    – Então vamos, eu te explico no caminho.
    Fomos andando pelos corredores em direção ao elevador. Anne foi me falando:
    – Eu acabei de pedir demissão da Glamour TV.
    – Por quê?
    – Aquele negócio que você me falou das escadas, aquilo meio que me pegou. Eu vi que eu estava aceitando coisas que não gostaria a troco de só continuar subindo.
    – Mas, e aí, você vai fazer o que?
    – Eu saí da cidade pra conversar com uma jornalista amiga minha. Nós vamos começar um podcast true crime.
    – Um o quê?
    – Podcast true crime. É um podcast que a gente expõe crimes que deram o que falar ou que estão sem solução até hoje.
    – Rapaz, pra que esse nome em inglês?
    Chegamos ao elevador e Anne continuou:
    – Eu vou ficar uns tempos fora da cidade pra ajudar a alavancar o projeto. Foi o estúdio que a gente conseguiu por enquanto.
    Ai, caramba! Essa notícia me deixou triste.
    – Você vai embora?
    – É, até a gente conseguir um estúdio aqui na cidade. Pode demorar mas...
    O elevador chegou, nós entramos e Anne reparou na minha expressão.
    – Tá tudo bem, Jerry?
    – Tá, tudo bem. Eu estou feliz por você. Só... Acho que... Vou sentir sua falta.
    Anne se espantou com a minha fala. Ela virou repentinamente pra mim e disse:
    – Jerry! Como assim?
    Nesse momento, as palavras saíam automaticamente da minha boca e eu estava todo desengonçado:
    – Eu gostei de trabalhar com você. Bom... Pra falar a verdade... Eu gostei de você. É...
    – Jerry, eu pensei que você ia ficar com a Jessy.
    – A Jessy? Não! Ela não faz o meu tipo. Eu fui vendo... Na verdade... Que eu gostava de você mesmo.
    – Jerry, eu... Eu também gostei de você.
    Depois que ela me disse isso, eu não conseguia mais falar, apenas fiquei olhando pra ela, que fazia o mesmo. O silêncio tomou conta do elevador e nós fomos chegando cada vez mais perto até que... O toque do elevador apareceu indicando que tínhamos chegado ao térreo, fazendo nós dois voltarmos.
    Saímos do elevador, fomos até a saída e então eu disse:
    – Bom, boa sorte pra você no seu podcast. Me passa o nome que eu indico pro pessoal.
    – Obrigada, Jerry! Tomara que a gente pegue o mesmo caso mais pra frente pra trabalhar junto de novo.
    – É, isso ia ser legal.
    Anne me deu um beijo no rosto e saiu. Eu fiquei parado vendo ela ir embora torcendo pra gente se ver de novo.
  • Jerry Bocchio e A Ameaça no Reality – Capitulo I: O Tédio da Vida Nova

    Meu nome é Jerry Bocchio, trabalho como detetive particular. Costumo pegar casos que a Polícia despreza porque, pra mim, não existe caso sem importância.
    No meu último caso, quando investiguei a rica Alice Harback, as coisas não acabaram tão bem quanto eu imaginava. Afinal, eu expus meu cliente e acabei sem uma boa parte do dinheiro prometido.
    Só que esse caso me deu visibilidade. Um belo dia, perto de chegar no meu escritório, ouvi a voz de uma mulher gritando meu nome do outro lado da rua. Quando olhei, vi que era uma repórter com um câmera ao seu lado. Logo lembrei da minha promessa feita ao Seu Rogério, dono da Padaria Nova Caledônia, de que se alguém fosse me entrevistar sobre o caso, eu iria dar a entrevista na fachada da padaria. Então saí correndo em direção à padaria fingindo que não queria falar, mas com passos não muito rápidos a ponto da repórter não desistir de me alcançar.
    Durante todo o percurso, eu ouvia da repórter a frase "Jerry, só uma palavrinha pra ARTV". Quando estava chegando na padaria, mandei uma mensagem para o Seu Rogério dizendo apenas "É agora". Ao chegar lá, vi o Seu Rogério na porta e parei de correr. Aí começou a minha atuação:
    – Está bem, está bem! Mas vocês da ARTV têm sorte de eu estar com bom humor hoje.
    – Ah, que ótimo, detetive! Eu sou Daniela Malta, da ARTV. Fala aqui pro pessoal de casa sobre o caso da Alice Harback.
    Um jeito meio alegre de abordar uma entrevista num jornal, né? Eu esperava uma pergunta mais formal.
    – É, não posso falar muito sobre o caso, mas consegui descobrir que Ivan Harback ainda está vivo e...
    – Tá, mas e o caso dela com o empresário Allan Tresekos? Teve foto?
    – Por que você está me perguntando isso? Essa é a parte secundária do caso.
    – Nããão, detetive! O pessoal de casa tá doidinho pra saber sobre o romance dos dois.
    – Desde quando o "Alerta Já" se preocupa com isso?
    – Ah, detetive, desculpa! Tá tendo um mal entendido aqui. Eu sou repórter do "Famosos em Foco". Mas conta aí, foi a Renata Tresekos quem contratou você pra investigar o romance deles?
    Que droga, cara! Eu virei notícia de programa de fofoca! Ainda por cima, quando eu voltei pro escritório, liguei meu computador pra procurar meu nome na internet e vi minha foto em um monte de portais de notícias de famosos. Eu detesto programa de fofoca!
    Sabe o que é pior dessa situação? Isso afetou o meu trabalho. Os casos que começaram a aparecer nos dias seguintes eram, em sua grande maioria, de maridos inseguros pedindo pra eu investigar se a mulher estava traindo eles. A maioria deles eram homens ricos bem mais velhos que as esposas, tem até termo pra isso, acho que é "suggar daddy". Eu nunca entendi essa cobrança deles por amor de suas esposas. Como você vai exigir amor numa relação iniciada por meio de um contrato? Aliás, eu desconfio que o sentimento que eles tinham por elas também não era amor.
    E eu vou falar uma coisa pra você, nas vezes que eu descobria que a mulher não estava traindo, não adiantava nada eu mostrar fotos, registros, testemunhas, nada! A paranóia e a insegurança desses caras não deixavam eles acreditar em mim e eu ficava sem receber algumas vezes.
    E assim foi indo durante longos seis meses, eu ficava direto indo atrás de mulheres completamente superficiais em festas, restaurantes, shoppings, bares, academias, salões de beleza... Eu nem precisava variar meus disfarces. A superficialidade dessas pessoas é tão alta que não precisava ser muito criativo nas conversas.
    Como eu sentia falta dos meus casos antigos. Tentar descobrir de qual poste partia o fio do gato de luz, me infiltrar numa empresa pra saber quem estava desviando produtos, saber qual era o sujeito que ficava pichando o prédio, descobrir quem roubou o material esportivo da aula de educação física... Aquela entrevista pra dona fofoqueira me fez muito mal.
    Isso tudo até esse dia. Lá estava eu, sentado, sozinho no meu escritório depois de ter tomado mais um esporro de um senhor de 56 anos que não tinha acreditado que sua mulher, de 32 anos, não estava tendo um caso com o enólogo. A minha mesa estava com várias fotos dela espalhadas e eu, apoiado sobre a mesa com o meu braço esquerdo segurando a minha cabeça, apenas esperando a hora de ir embora. Aí ouvi uma batida na porta. Eu, completamente amoado, soltei pra pessoa:
    – Entra!
    Era uma moça vestindo um blazer e roupa social feminina. Ela aparentava ter mais ou menos a minha idade. Suas roupas, o rabo de cavalo e a maquiagem discreta me davam a impressão de que ela era uma mulher séria. Fiquei um pouco aliviado com a variação do tipo que apareceu no meu escritório. Agora só me falta ela ser a esposa que tá desconfiada do marido mais velho. Conforme ela foi chegando perto da minha mesa eu fui me ajeitando. Ela se sentou e perguntou:
    – Você é Jerry Bocchio?
    – Quem pergunta?
    – Meu nome é Anne Gonzalo, eu sou produtora de TV do canal Glamour TV.
    Ah, pronto! O Glamour TV é um canal de TV a cabo que só passa programas sobre celebridades e realities de gente rica se pegando. Não consegui esconder minha frustração:
    – Ah, não! Programa de fofoca de novo? Eu quero investigar crimes, poxa!
    – Então não se preocupe sobre isso, detetive. Tenho algo aqui que você vai querer.
    Ela puxou o celular da bolsa, abriu o aplicativo de mensagens e deu o play em uma mensagem de áudio. O sujeito da mensagem de áudio falava com uma voz bem grossa, parecia o Darth Vader. Ele dizia o seguinte:
    "Atenção aos produtores da Glamour TV: Não gravem mais o programa "Jantando Com o Ex". Caso contrário, haverá sangue em suas mãos"
    Eu não sabia se ficava com medo ou animado. Era um caso diferente de suspeita de traição aparecendo pra mim, mas era uma ameaça de morte pra uma emissora de TV.
    – Caraca! A Polícia não quis atender vocês por quê?
    – Na verdade, nós decidimos não chamar a Polícia ainda pra evitar tumulto com o público. Aí nós vimos seu trabalho no caso do General Ivan Harback e vimos que você pode nos ajudar a identificar o autor da ameaça antes de começarmos as gravações do programa.
    Opa! Ela disse "caso do General Ivan Harback"! Significa que eles focaram na parte importante do caso antes de me procurar! Me animei, voltei à minha postura de detetive e comecei a mostrar minhas habilidades pra ela:
    – Interessante, muito interessante! Você veio ao lugar certo, moça! Eu, só de ouvir essa gravação, já consigo traçar parte do perfil do suspeito.
    – Sério? O que você notou sobre ele?
    – Nota-se, claramente, que ele é um vocalista de uma banda de death metal.
    – Como você sabe disso?
    – Ora, Anne. Olha a voz gutural que ele está usando na gravação. Só alguém que canta death metal consegue fazer a voz ficar assim.
    – Você sabe que ele está usando um recurso de áudio pra mudar a voz dele, né?
    – Ué, dá pra fazer isso?
    – Sim, hoje tem até aplicativo de celular que faz isso!
    – Aaaah! Nossa, que legal! Acho que vou baixar um desses! Deixa eu pegar aqui meu celular...
    – Ai, detetive! Você aceita o trabalho ou não?
    – Sim, aceito!
    – Ótimo! Então amanhã eu vou mandar um motorista te buscar às 8:00 pra te levar até o aeroporto onde você vai me encontrar...
    – Opa, opa, pera aí! Aeroporto?
    – Sim, você vai comigo no jato da emissora pro Caribe, que é onde vai ser gravada essa temporada. Então faça as suas malas e não aceite mais nenhum outro caso por enquanto. O nosso pagamento vai cobrir sua exclusividade.
    Caraca, eu vou pro Caribe! Eu voltei a ficar empolgado de um jeito que parecia quando eu tinha sido promovido pra ser investigador. Fui correndo pra casa pra me preparar pra viagem. E ainda baixei o aplicativo pra mudar de voz. É muito legal mesmo, tem até voz de esquilo nele.
    Mas tenho que manter o foco! Tem um cara mandando uma ameaça pra uma emissora de TV e eu não sei nem de onde veio e nem a motivação dele. Tenho que ser sério! Mas também o fato de não ser mais suspeita de traição me deixa ainda mais empolgado. Então, vai ser difícil segurar tanta empolgação.
    Continua...
  • Jerry Bocchio e a Ameaça no Reality – Capitulo II: O Programa

    No dia em que Anne Gonzalo, produtora da Glamour TV, me contratou para investigar uma ameaça a uma emissora de TV a cabo, fiquei muito empolgado. Confesso que foi até difícil pegar no sono, o que me ajudou foi o aplicativo que altera vozes que eu baixei no meu celular. Eu ficava dizendo frases e mandando o aplicativo alterar minha voz nas gravações. Eu achei bem engraçado, ajudou a aliviar minha ansiedade.
    No dia seguinte, estava eu, em meu escritório, aguardando o motorista da emissora. Ele chegou na hora combinada. Se apresentou, provou para mim que era mesmo da emissora, pegou minhas malas para guardar no porta malas do carro e me levou até o aeroporto. Durante a viagem ele não falava nada. Geralmente, motoristas particulares são assim mesmo. Deve ser coisa de gente rica, não gostar de conversa, então só contratam gente calada.
    Chegando ao aeroporto, não precisei passar por todos aqueles trâmites comuns que um eu passo quando compro uma viagem parcelada. Foi bem mais rápido. Perto do embarque estava Anne me esperando conforme o combinado. Embarcamos no avião e ela também ficou calada. Só mexendo do tablet dela. Só que eu precisava de algumas informações, eu nunca assisti esse reality show. Então, tentei puxar assunto:
    – Escuta, Anne. Esse programa "Jantando Com o Ex", do que se trata?
    Sem tirar os olhos do tablet, ela foi respondendo:
    – Você nunca assistiu, detetive?
    – Não. Não sou muito fã de realities. Nem de fofoca, celebridades etc.
    – Não é fã de fofoca, mas ficou famoso por causa delas. Bastante irônico, não?
    – Olha, acho que vai ser mais fácil se me falar como funciona. Talvez tenha alguma relação com a ameaça.
    – Nós convidamos homens e mulheres que saíram recentemente de relacionamentos. Eles passam um tempo num lugar turístico se conhecendo pra tentar uma nova relação. Aí, se der indícios de que os casais estão se formando, eles vão para um encontro final num jantar pra saber se vai ser definitivo. Durante os jantares no restaurante os ex deles aparecem lá.
    – Pra que isso?
    – Pra dar conflito.
    – Caramba, isso é um pouco sádico, não? Por que alguém aceitaria participar disso?
    – Tudo é show business, detetive.
    Essa última frase meio atravessada de Anne, junto com sua postura de que não tava muito afim de assunto, me convenceram a terminar a conversa. Mas daí pode ser o começo da minha linha de investigação.
    O avião chegou ao local. Eu disse que ia pro Caribe, mas não especifiquei o local, né? Nós desembarcamos em Aruba. Anne me disse que lá é onde ocorreriam as gravações. Eu não detalhei porque sempre pensei que o Caribe fosse um lugar só, não vários países e ilhas juntos. Eu deveria mesmo ter estudado geografia na infância.
    Nós fomos ao restaurante onde ocorreriam os tais "conflitos" que o programa tanto busca. Anne me disse que o diretor do programa nos encontraria lá porque queria me conhecer. Quando entrei lá, vi um ambiente um pouco descolado pra ser chamado de restaurante chique. Tinha um bar com alguns barmans fazendo drinks, umas mesas com temas praianos espalhadas pelo salão, garçons andando pra lá e pra cá e uma porta grande com um segurança ao lado indicando ser um espaço VIP.
    Anne me disse que o diretor não estava lá no momento, mas que iria chegar em instantes, então ele reservou uma mesa para que aguardássemos ele. Anne falou com um garçom que nos acompanhou até a mesa e logo foi puxando a maquininha pra anotar algum pedido. Anne ia dispensá-lo, mas eu estava com sede durante toda a viagem, além disso, eu também queria mostrar minhas habilidades como poliglota. Puxei minha apostila do curso de espanhol que precisei fazer pra investigar um caso e falei:
    – Holá... mesero... Yo quiero una... Cueca Cuela con pedritas de hielo... Por favor.
    Depois disso, o garçom ficou olhando pra mim igual aquele rapaz do meme que não entende nada. Aí Anne interveio:
    – A Coke with ice, please.
    Aí o garçom foi embora e eu é quem não estava entendendo mais nada:
    – Eles falam em inglês aqui, é? Caramba, eu trouxe a apostila errada!
    – Não, eles também falam em espanhol aqui. Acontece que isso que você falou não era nada! "Cueca Cuela"? Que negócio foi esse?
    – Aaaah! Nossa, será que era por isso que aquela moça mexicana que eu precisei investigar mês retrasado dizia que me achava engraçado? Eu achei que meu disfarce tava indo bem, olha só! E pensar que eu fiz um curso intensivo de dois meses de espanhol pra investigar esse caso!
    – É sério que você achou que ia aprender espanhol em dois meses?
    – Era o que eles prometiam, ué! E era um curso intensivo. Como eu vi "intensivo" na propaganda do Google, eu pensei que estava aí a minha solução. Tá certo que eu não vi todo o material, mas...
    – Olha lá, detetive, ele vem vindo.
    Olhei para trás e vi um homem um tanto excêntrico andando em direção à nossa mesa. Ele andava com passos ritmados, como se estivesse num videoclipe, só que sem música. Talvez na cabeça dele devia estar tocando alguma. Não julgo, às vezes acontece comigo também, só que com músicas muito chatas. Ele é aquele típico homem de meia idade que não aceita a chegada do tempo: cabelos tingidos, um topete chamativo, óculos escuros dentro de um ambiente e uma roupa parecida com as daqueles figurões de Las Vegas. Quando chegou perto, já foi falando num tom muito alto, quase gritando:
    – Ah, Anne! Está aí com o nosso detetive! Por que não me apresenta?
    Com uma feição um pouco contrariada, Anne se levantou e disse:
    – Ronald, esse é o detetive que eu comentei, Jerry Bocchio. Jerry, esse é o diretor do programa, Ronald Barros Junior.
    – Jerry Bocchio, muito prazer! Pode me chamar de Roninho. Eu vi muito sobre o senhor quando investigou o romance entre Alice Harback e Allan Tresekos. Foi um trabalho excepcional!
    Ai, que droga! O pessoal só me conhece por isso?
    – O prazer é meu, Ronald.
    – Roninho, por favor. Faço questão.
    – OK então. Roninho, o prazer é meu. Só que é o seguinte, nesse caso eu também descobri que o General Ivan Harback está vivo. A parte do romance é a parte secundária do caso.
    – Ah, detetive! Isso o que você chama de "secundário" é o que o público gosta de verdade. O público gosta de ver casais em crise logo depois de começar um relacionamento, briga com gente alcoolizada por motivos passionais, talvez até com agressão física, descobertas de traição, tudo isso. Eu até queria te perguntar se você não tem mais casos assim, detetive. Quem sabe a gente não faz um programa novo com isso, não é mesmo?
    Foi então que Anne interveio de novo:
    – Na verdade, Roninho, eu trouxe ele aqui pra investigar a ameaça que a gente recebeu.
    – Poxa vida, Anne! Você está mesmo querendo continuar com a produção do programa? A gente recebeu uma ameaça, é melhor cancelarmos essa temporada. Pessoas aqui correm perigo!
    Que estranho! O mesmo cara que, instantes atrás, disse que não liga de expor vidas e humilhar pessoas em prol da audiência agora fala de proteger vidas? Tem uma dualidade aí.
    – Então, Roninho, eu já tinha te dito na última reunião que não depende só de você. A emissora quer o dinheiro do patrocinador, que quer essa temporada. Então eu trouxe o Jerry Bocchio aqui por enquanto. Caso ele descubra algo, a gente chama a polícia.
    – Ai, ai, viu? Eu estou com um mal pressentimento sobre isso! Ainda acho melhor cancelarmos essa temporada. Bom, de qualquer modo, foi um prazer conhecê-lo, detetive. Eu preciso conversar com o dono do restaurante pra combinar como tudo vai ser gravado. Até mais!
    Roninho saiu e eu não aguentei ficar sem falar nada:
    – Que sujeito excêntrico, hein Anne?
    – Ai, detetive, a gente não escolhe o patrão. Mas, enfim, você já tem algum plano em mente?
    – Bom, nesses últimos seis meses que eu fiquei trabalhando só com casos de supostas traições, porque não apareciam outros, eu vi que esse negócio de ex aí pode dar muito problema. Acho bom dar uma olhada nesses ex aí. Se eu der sorte, já mato a charada logo de cara, se não, já tiro isso da frente, pelo menos.
    – Então, detetive, temos um problema. Os ex ainda não estão aqui e só o pessoal do casting sabe quem são eles. E os participantes.
    – Bom, então me deixa falar com os participantes. Eu posso conseguir informações sobre o relacionamento anterior deles.
    – Está bem então. Mas eu vou com você.
    – Ué, por quê?
    – Depois daquela do "vocalista de death metal", é melhor eu estar junto pra ajudar. Tome, aqui está a chave do seu quarto do hotel. É o mesmo de onde a equipe toda está instalada. Amanhã eu junto os participantes para você conversar com eles.
    – É um caso envolvendo ameaça, pode não ser seguro.
    – Não se preocupa comigo não, detetive. Agora termina aí sua "Cueca Cuela" pra gente ir pro hotel.
    Eita, que coisa, viu? Tá parecendo o Capitão Gregade comigo. Ela parece bem chateada com o trabalho dela também, aquela conversa com o diretor deu pra perceber um toque de insatisfação.
    Agora é se preparar pra amanhã, quando vou interrogar os participantes do reality. A minha intuição diz que tem coisa quente aí. E vou tentar convencer a Anne a não se envolver muito para a própria segurança dela. Ela parece ser firme na decisão dela, mas eu tenho que tentar.
    Continua...
  • Jerry Bocchio e a Ameaça no Reality – Capitulo III: Os Participantes

    Cá estou eu, no Caribe, mais precisamente em Aruba. O dia mal amanheceu e eu já estou acordado no quarto do hotel me preparando para os interrogatórios que vou ter com os participantes do reality. O reality se trata de romances, mais especificamente, romances que deram errado. Então preciso ser cuidadoso com minhas abordagens.
    Para isso, eu estava dando uma repassada no meu caderno de como fazer interrogatórios, com anotações pessoais que fui fazendo durante minha experiência como investigador da polícia e particular. Tá, e também tem algumas anotações baseadas em filmes e séries que eu assisto... OK, eu confesso, tem mais anotações referentes a filmes do que da minha experiência. Enfim, eu estava dando uma olhada nesse caderno quando meu celular tocou. Era Anne Gonzalo. Ela pedia para eu encontrá-la na recepção do hotel para irmos até o estúdio de gravação onde eu conversarei com os participantes.
    Peguei meu caderno, minhas coisas, e pensei em pegar minha jaqueta. O problema é que em Aruba faz muito calor e eu não aguento ficar com uma jaqueta num calor desses. Eu não gosto de ficar sem a minha jaqueta porque isso atrapalha minha imagem de detetive. Aliás, quando eu me tornei detetive particular, minha intenção não era nem comprar uma jaqueta esportiva, era comprar um sobretudo mesmo. Poxa, todos os detetives na TV usam algo desse tipo e andam com as mãos nos bolsos dos casacos, o Kojak, o Columbo, o John Constantine, o Sherlock Holmes em algumas adaptações... Mas o clima no Brasil não deixa eu ter estilo.
    Desci na recepção do hotel e Anne estava me esperando lá com o motorista. Ela estava com a cara menos amarrada do que das outras vezes que conversei com ela. Um indício de que ela possa estar com um bom humor. Talvez agora eu consiga fazer ela entender que não deve se envolver muito no caso, para a segurança dela mesma.
    – Bom dia, detetive! Preparado para conhecer os participantes?
    – Bom dia, Anne! Sim, tenho tudo o que preciso aqui no meu caderno.
    – Não vai me fazer sentir vergonha alheia de novo, hein?
    – É, então... Sobre isso... Esse é um caso de ameaça que a gente não faz ideia de quem mandou. Pode ser qualquer um. Pode ser um fã, um ex dos participantes, pode ser da produção, da emissora, pode ser até o motorista aí...
    Então, percebi que o motorista me olhou assustado.
    – Não que eu esteja desconfiando de você, hehehe. É só uma suposição, fica tranquilo. Então, Anne...
    – Ah, já sei! Você quer que eu fique de fora pra minha segurança, não é?
    – É... Pelo visto você entendeu, né? Pode ser perigoso.
    – Olha, detetive, não se preocupa comigo não que eu sei me virar, tá bom? Além do mais, seu sucesso nesse caso garante o meu também, já que fui eu quem te indicou pra diretoria da emissora. Eu vi como você descobriu sobre o general que assumiu a identidade da mulher dele. Então, acho que a gente tá nessa juntos.
    Uma coisa que eu não tinha reparado: Anne foi a única que prestou atenção na parte certa do meu outro caso. Além disso, ela me parecia empolgada. Parecia com a mesma empolgação que eu sentia quando ia investigar meus primeiros casos após ser promovido na Polícia. Um outro indício disso era que era ela quem me fazia as perguntas durante a viagem até o estúdio.
    – E então? Como você procede?
    – Ué? Como assim?
    – Você tem algum tipo de método pra saber se a pessoa é suscetível, se está mentindo, etcetera?
    – Não, eu só pergunto o que a pessoa sabe. A única coisa que eu mudo é a abordagem.
    – Mas e se ela estiver tentando te ludibriar? Eu vejo em vídeos que as pessoas dão sinais quando estão mentindo, você não detecta nenhum?
    – Nah! Eu não me concentro muito nisso não. Se você fica muito preocupado com isso, acaba se perdendo. Só se for algo bem escancarado. Além disso, as provas falam mais do que os investigados.
    – Nossa! Achei que era diferente. Bom, como já estamos chegando, deixa eu te adiantar: os participantes homens e as mulheres não podem se ver antes das gravações. Então, na parte da manhã você falará com os homens e depois do almoço falará com as mulheres.
    – Quantos participantes são?
    – Três homens e três mulheres.
    – Bom, tenho muita conversa pra hoje.
    Quando chegamos ao estúdio, nos encontramos com Roninho, o diretor do reality. Ele disse que faria questão de acompanhar também os interrogatórios. Eu acho um pouco limitador tanta gente observando. Mas, como o trabalho deles envolve ficar acompanhando pessoas por vinte e quatro horas, vou ter que aguentar isso.
    Eu me sentei em uma mesa posta no meio do estúdio e Anne, sem falar nada, se sentou ao meu lado. Eu pedi para Roninho chamar o primeiro participante. Ele chamou e logo entrou na sala um homem com pinta de modelo ou astro de Hollywood. Ele andava de forma nada discreta, como se estivesse naquelas propagandas de perfume para homem. Ele se sentou à minha frente e eu logo comecei:
    – Nome e profissão, por favor.
    – Meu nome é Marco Polo Alfinco. Sou empresário. Você é que é o cara que vai investigar a ameaça, é?
    – Então, você também está sabendo.
    – Tá todo mundo sabendo. Notícia como essa espalha fácil, cara!. Mas não se preocupa que não fui eu.
    – Na verdade, Marco, eu queria saber mais sobre sua relação com a ex. Vocês eram o quê? Namorados, casados ou outro tipo?
    – Haha! Você tá achando que foi ela? Por minha causa?
    – Olha, vai ficar mais fácil se você responder minhas perguntas, Marco.
    – Eita! Um detetive linha dura! Beleza então! Ela é minha ex-noiva.
    – Ex-noiva? Por que terminaram? Quem terminou?
    – É, desgaste na relação. Foi um rompimento mútuo.
    Quando um cara desses fala que foi "mútuo" é porque foi ela quem terminou, pode apostar. Além do mais, chegou a ser noiva. Pra ter um rompimento num noivado, muito provavelmente, algo aconteceu, não só "desgaste na relação". Mas, sabendo como é complicado esse negócio de romance, não vou descartar totalmente por enquanto.
    Roninho mandou entrar o segundo. Achei curioso quando ele entrou. Era um senhor de idade usando roupas de turista. Eu não aguentei e perguntei para Anne:
    – Não são apenas os jovens que participam?
    – É que nessa temporada a emissora quis apostar em um homem com sabedoria. Eles estão vendo a tendência de professores e palestrantes virando influenciadores e acharam que seria bom colocar um para participar.
    Diferente, não? Pensei que eles davam valor só pra pegação. Ou será que eles teriam... É melhor eu não terminar a pergunta.
    – Quer dizer que o senhor é professor? Qual é seu nome?
    – Professor, historiador e filósofo. Meu nome é Augusto Cyran
    – Certo, Professor Cyran. Como era sua última relação e como terminou?
    – Era uma relação maravilhosa que eu tive com minha esposa. Foram 40 anos de casados. Infelizmente acabou porque ela faleceu.
    Ué? Como? Se o programa tenta criar conflito com ex, como vai fazer isso com um viúvo? O espírito dela vai aparecer? Esse pessoal do show business não sabe o que inventar mesmo.
    Eu até poderia detalhar a conversa com o terceiro participante, mas ele era exatamente igual ao primeiro. Presunçoso, superficial, andava como se estivesse num filme de ação, ostentava suas roupas. Até o jeito de falar era igual. Na hora do almoço eu falei sobre isso com a Anne:
    – Vocês selecionaram dois caras completamente iguais pra participar.
    – Ai, detetive, nem me fala! Eu tive que participar da seleção e vi mais dez iguais a eles.
    – Não dá muita diversidade pras mulheres escolherem, né?
    – Calma que você ainda vai falar com elas. Aí depois você me fala.
    Então começaram as conversas com as participantes mulheres. E mais uma chuva de superficialidade, presunção e ostentação com as duas primeiras. Meio que como uma fosse a outra depois de trocar de corpo. Depois que a segunda saiu eu olhei para Anne que me olhou fazendo uma expressão como quem diz: "Eu não disse?" Eu, simplesmente, não entendo como ela aceita esse trabalho que faz ela passar por isso. Ela passa a nítida impressão de que não gosta daquilo.
    Roninho mandou entrar a terceira participante. Uma moça que parecia um pouco mais jovem que as outras duas. O braço direito dela tinha uma tatuagem que ela fazia questão de deixar à mostra. Parecia ser um pouco diferente das outras duas, um pouco mais enérgica. Os cabelos vermelhos dela chamariam a atenção até mesmo no meio de uma torcida do Internacional. Ela se sentou à minha frente e foi ela quem começou:
    – Uau! Jerry Bocchio! Você é quem é o detetive?
    Opa, Ela me conhece! Um começo diferente como esses merece uma abordagem diferente. Então consultei meu caderno e respondi:
    – Sou eu quem faz as perguntas aqui, mocinha! Ah, não, pera... Abordagem errada, desculpa o grito. Deixa eu ver a página certa do meu caderno aqui... Hum, deixa ver... Ah, achei! Sim, cara testemunha, eu sou um detetive... Ah, não eu acho que ainda tá errado.
    – Gente, eu tô confusa. O que tá acontecendo aqui?
    – Liga não Jéssica, esse detetive sempre dá uma dessas. Mas ele o detetive sim. – Disse Anne, se metendo no meio da conversa.
    – Quer saber? Vou deixar meu caderno de lado e vou voltar pra abordagem padrão. Nome e profissão, por favor.
    – Nossa! Você não me reconhece? Eu sou a Jessy Lins!
    – Não tô lembrando de você não, desculpa. De onde nos conhecemos?
    – Não é isso! Eu sou influencer de cultura pop! Nunca viu meus vídeos nas redes sociais?
    – Aaaah! Eu não sou muito de ficar em redes sociais. Esse negócio de ficar rolando a tela pra cima me dá tontura.
    – Você devia ver mais, então. Você está bem famoso nelas por causa do caso do empresário com a velha rica que está morta.
    – Ah, não! Que saco! Essa não era a parte principal do caso, gente!
    – Pelo visto você não queria essa fama, né? A internet é assim mesmo. Por que você está aqui então?
    – Bom, como todo mundo aqui já sabe, eu vou falar: alguém enviou uma ameaça para a produção do programa e eu fui chamado pra investigar.
    – Uau! Eu vou fazer parte de uma investigação que nem aquelas dos filmes? E com você como detetive? Então eu vou ajudar. Voltando do começo: Meu nome é Jéssica Lins e eu sou influenciadora digital.
    A decisão repentina de colaboração dela me deu ânimo pra continuar:
    – Eu queria saber sobre sua última relação. Vocês eram namorados, casados ou outra coisa?
    – Namorados.
    – Quem terminou a relação e por quê?
    – Ah, nem gosto de falar. Aquele babaca! Eu mal terminei com ele e ele já está com outra.
    – Pelo visto, teve problema então. Você acha que ele seria capaz de se vingar caso te visse com outra pessoa?
    – Ele? Pfff! Ele tem só pose! Que nem um baiacu. Além disso eu não vim aqui pra encontrar outro relacionamento, só vim porque o meu patrocinador é o mesmo do programa.
    Por algum motivo, Roninho achou que iria poder se meter na conversa, aí, enquanto ele falava, eu fui dando uma olhada no meu caderno pra saber se eu tinha alguma anotação sobre essa situação.
    – Jessy, você já veio com essa ideia pro programa?
    – Ai, Roninho! Cansei desse tipo! Eles não valem nada! Eu estou começando a ver um pouco de valor mais em alguns lobos solitários, mais especificamente, alguns que evitam até redes sociais.
    – Ah, mas esse tipo também não...
    – Sou eu quem faz as perguntas aqui, rapaz! A-ha! Agora eu acertei a abordagem! Então, Jessy Lins, como ele ia falando, esse negócio de sair com lobos pode ser perigoso mesmo, além do que, pra adotar animais selvagens precisa de umas autorizações especiais. Não sou especialista nisso.
    – Detetive, você entendeu o que ela...
    – Olha, Roninho... Quer que eu passe pra página 90 do meu caderno?
    – Hahahahaha! Você é engraçado, Jerry! Quando acabar esse caso, você não quer dar uma entrevista no meu canal? Eu posso te ajudar a mudar a sua imagem.
    Então, foi a vez de Anne interromper de novo:
    – Na verdade, a emissora não pretende passar isso pra imprensa... Coisas dos bastidores.
    – Não vai gritar com ela que nem você fez comigo, detetive?
    – Gente! Isso aqui já tá parecendo o Superpop já, com tanta gente interrompendo. Quer saber? Jessy Lins, pode ir, está dispensada. Qualquer coisa eu te chamo de novo, beleza?
    Depois de todas essas conversas, estava eu tentando tomar meu café com um pão na chapa, que nem eu faço na Padaria Nova Caledônia, pra tentar organizar meus pensamentos. O problema é que, no Caribe, eles não sabem fazer isso. Então estava tentando reproduzir o ambiente com um expresso mesmo. E eu vou te falar: que café ralo!
    Enfim, estava eu lá quando Anne apareceu e se sentou à mesa junto comigo.
    – E aí, detetive? Já tem algum palpite?
    – É, foi difícil tirar alguma informação relevante desse pessoal. Mas, eu tenho a impressão de que Jessy Lins tem algo interessante para nós.
    – Por que ela?
    – O relacionamento dela foi o único que acabou em problema, quer dizer, problema passional, né? Já que um deles virou viúvo. Mas, como eu não acredito que o espírito da mulher dele tenha amaldiçoado o programa, eu acho que Jessy Lins é a que tem mais chance.
    – Então, você crava que o motivo é passional.
    – É, então, ainda estou no começo. Talvez possa não ser esse motivo. Pra dar continuidade, eu queria mais informações sobre o patrocinador. Você disse pro Roninho que o patrocinador quer a temporada desse programa independente de ameaça ou não. Por que ele tem tanta confiança que vai dar certo? Eu conseguiria falar com ele?
    – Vai ser difícil, ele só fica na área VIP do restaurante. Poucas pessoas têm acesso.
    – Então, vou bolar um disfarce para nós tentarmos entrar amanhã.
    – Nós, detetive?
    – Sim. Você não disse que a gente está junto nessa?
    Anne se empolgou com a minha decisão. Parecia que ela estava gostando de trabalhar como investigadora. Ela pediu um café também para ir combinando comigo como nós iríamos fazer para entrar na área VIP do restaurante.
    Então, agora eu tenho uma parceira para investigar o caso. Espero que nós sejamos uma dupla entrosada para que o trabalho flua melhor.
    Continua...
  • Jerry Bocchio e os Ratos na Padaria - Capítulo V: Conseguindo um Atestado

    Eu acabei de descer do carro do Tom. Eu estava microfonado e com um ponto no ouvido indo em direção à clínica do Doutor Álvaro Boa Morte. Minha jaqueta de moletom com um gorro disfarçava tanto o microfone, quanto o ponto. Os óculos escuros foram só pra completar o disfarce. O plano era flagrar o médico dando um atestado falso para que Tom possa levá-lo à delegacia.
    Virei a esquina e me deparei com a placa da clínica: "Clínica Boa Morte". Cara, tá de brincadeira, né? Tá certo que esse é, provavelmente o sobrenome do cara, mas esse nome não combina com uma clínica médica. Não dá, não encaixa! Quem, em sã consciência, vai tratar uma doença na num lugar chamado "Clínica Boa Morte"? Só se for pra pegar atestado falso mesmo.
    Enfim, entrei na clínica. Cheguei na recepção e a recepcionista já foi perguntando, como quem não estava afim de conversa:
    – Nome e horário marcado.
    Nessa hora, Tom disse no meu ponto:
    – Jerry, foi mal! Esqueci de falar no carro. Você é Jefferson Barbera e tá marcado para as 19:30.
    Jefferson Barbera? Eu não aguentei. Virei o rosto para trás e cochichei próximo do microfone, fingindo que estava bocejando:
    – Você não baseou esse personagem em um dos criadores do "Tom & Jerry" não, né?
    – Se você tivesse me falado antes sobre o desenho, eu não teria feito isso.
    A recepcionista não gostou muito da demora da minha resposta e falou mais alto e com um tom ainda mais ríspido:
    – Nome e horário marcado.
    Então eu entrei no personagem. Engrossei um pouco o tom da minha voz e comecei a falar de um jeito meio marrento:
    – Foi mal aê, mina! Eu sou Jefferson Barbera, tô marcado pras sete e meia.
    – O senhor tem cadastro na clínica, senhor Jefferson?
    – Não sou chegado nesses bagulho de cadastro não, tá ligado?
    Nessa hora, Maurício, por algum motivo, falou no meu ponto:
    – Detetive, não exagera no disfarce!
    Após isso, eu só ouvi a voz do Tom falando "me dá isso aqui". Aí a recepcionista continuou:
    – Olha, não sei quem você é, mas aqui todo mundo tem que responder o cadastro. Vamos fazer ou o senhor vai ficar parado com essa pose fajuta?
    – Firmeza então! Mas só porque eu fui com a tua cara, tá ligado?
    – Oh, como estou lisonjeada! Agora senta aí pra responder.
    Não gostei do tom sarcástico da recepcionista, mas eu tinha uma missão e precisava cumprir. Então, sentei na cadeira à frente do balcão e ela começou as perguntas:
    – Profissão.
    – Num tenho.
    – Como você vai pagar a consulta então?
    – É que eu tenho outra fonte de renda.
    – Do "tá ligado" pra "outra fonte de renda". Você é mesmo da quebrada, hein?
    – Cê num sabe da missa, um terço, mina!
    Por algum motivo, ela começou a rir com tom de deboche. Mas depois, continuou:
    – Ah, que se dane! Qual é a sua fonte de renda?
    – Num posso falar.
    – Olha, eu preciso colocar a sua atividade para o doutor saber se isso afeta a sua saúde.
    Eu me curvei mais perto do balcão e falei baixo:
    – Tem a ver com internet.
    – Você é hacker?
    – Fala baixo, mina!
    Nesse mesmo instante, Tom me disse pelo ponto:
    – Jerry, você está tentando fazer papel de hacker?
    A recepcionista começou a gargalhar incontrolavelmente. Enquanto isso, Tom ia me falando pelo ponto:
    – Jerry, hackers não costumam falar desse jeito. Eles não gostam de chamar atenção.
    Então, ficaram, quase ao mesmo tempo, a recepcionista e o Tom falando comigo:
    – Ai, ai! Tá explicado! Você deve ter começado ontem, né?
    – É, Jerry, nessa ela tem razão. Hackers não costumam se vestir desse jeito na rua, só quando fazem vídeos ameaçando na internet mesmo.
    – Aposto que você começou com isso porque viu num desenho. Ah, desculpa, num anime! Hahahahahaha.
    – Além disso, aquela voz que você ouve nos vídeos não é a voz real deles, é uma voz distorcida eletronicamente.
    Eu fui ficando confuso com a situação, até que não aguentei. Acabei deixando escapar um grito:
    – Dá pra parar vocês dois?
    Um ato falho que pode comprometer tudo. A recepcionista ficou me olhando com cara de desconfiada. Tom deixou escapar um "eita" no ponto. Então a recepcionista me perguntou:
    – "Vocês dois"?
    Eu não tinha muito o que falar na hora. Eu não ia falar pra ela que eu estava com um ponto no ouvido. Por causa do nervosismo, acabei dizendo a primeira coisa que veio na minha cabeça, que foi:
    – É que eu vejo espíritos... Aí tinha um... Atrás de você... Também tava dando risada...
    Talvez fosse melhor eu falar do ponto. Percebi isso depois do palavrão que eu ouvi do Maurício. Mas, para minha sorte, a reação da recepcionista foi:
    – Ah, dane-se! O Doutor Álvaro que se vire com você. Quem sabe ele não te dá um remédio pra esquizofrenia, não é mesmo?
    Ah, funcionários infelizes com o trabalho! Sem eles, o país não anda. Se bem que, se eles estivessem felizes, talvez o país andasse mais, né? Mas nesse caso, não. A infelicidade laboral da recepcionista fez com que ela não chamasse a Polícia para mim, só pra passar a bucha pro patrão dela.
    Sentei na sala de espera e dei uma boa olhada no lugar. Não tinha muita gente além de mim. Apenas uma senhora idosa com um andador e um homem de uniforme de empresa sentado com os braços cruzados. A clínica seguia o estereótipo das clínicas médicas, pois havia uma mesa de centro com várias revistas velhas. Uma delas falava sobre a final da Copa de 1998. Não peguei pra ler porque esse dia foi muito traumático pra mim (até a Copa de 2014, lógico).
    O médico chamou primeiro a senhora, depois de uns 20 minutos, chamou o homem uniformizado. Aí, depois de menos de 10 minutos, me chamou. O fato da consulta do homem uniformizado ter demorado menos da metade do tempo da consulta da senhora me chamou a atenção.
    Passei pelo Doutor Álvaro, que ficou parado na porta, e entrei no consultório. Um consultório simples, com uma maca, uma mesa com um computador e alguns aparelhos médicos que eu não sei dizer o nome. Eu me sentei na cadeira reservada para pacientes, na frente da mesa. O Doutor Álvaro passou por mim, se sentou em sua cadeira e começou a mexer no computador. Então ele começou:
    – Senhor Jefferson Barbera, certo?
    Eu mantive meu modo marrento de falar:
    – Certo!
    – A Suellen colocou no seu cadastro que você está com suspeita de esquizofrenia. Desde quando você suspeita disso?
    Essa recepcionista não foi com a minha cara mesmo.
    – Tá me tirando, mano? Essa mina tava de zoação com a minha cara o tempo todo.
    Então, Tom disse no meu ponto:
    – Jerry, você vai insistir nesse jeito de falar mesmo?
    Eu tive que usar a estratégia do bocejo de novo pra virar a cara pra trás e cochichar no microfone:
    – Deixa eu, Tom! Eu sei o que estou fazendo!
    O Doutor Álvaro continuou:
    – Se não é isso, porque está aqui então?
    Eu me virei pra ele de volta, me inclinei pra perto da mesa e falei:
    – É o seguinte, mano: eu preciso justificar umas faltas pro meu patrão, tá ligado?
    – Mas aqui está falando que você não trabalha com uma profissão legalizada, só como hacker.
    – É... Que eu faço parte de um grupo de hackers.
    – E mesmo assim precisa de atestado?
    – É que eles são rígidos... Digo... São dureza.
    O Doutor Álvaro me olhou com um olhar de desconfiança:
    – Você não é um policial disfarçado não, né?
    – Quê? Cê é louco? Eu tenho nojo de polícia!
    Essa pergunta dele indica que ele já deve ter passado por isso antes. Sem falar nada, ele foi pegando um bloco de papel impresso da gaveta dele, sem tirar o olho de mim. Ele pegou sua caneta e me perguntou:
    – Qual é o período das faltas?
    Rapaz, tão fácil assim?
    – Desde terça feira da semana retrasada.
    Ele olhou no calendário dele.
    – Desde o dia 8 então. Muito tempo. Vou falar que você teve uma pancreatite e precisou ficar internado.
    Enquanto ele ia escrevendo, eu precisei falar algo que estava corroendo a minha mente naquele momento:
    – Então, eu também tenho um nome pra disfarce.
    – Como assim?
    – É, eu sou o Jeff Barbeiro.
    – Bom, primeiro, se sua intenção é não ser detectado, não é um bom nome. Segundo, o que isso tem a ver?
    – É que o seu nome, né?
    – Como assim?
    Eu acabei desabafando de um modo um tanto escandaloso:
    – Boa Morte, poxa! Como que um médico vai se chamar Boa Morte? Pelo amor de Deus!
    O Doutor Álvaro não gostou nem um pouco da cena. Ele só me deu o papel e me disse, falando firme e com uma certa raiva, apontando o dedo indicador:
    – É por causa de pessoas que pensam como você que eu me vi obrigado a fazer esse tipo de serviço. Ou você acha que, quando eu saí da faculdade de medicina, meu objetivo era sair distribuindo documentos falsos? Isso é preconceito, sabia? Lá em Portugal, esse sobrenome é comum, teve até um jogador que jogou Copa do Mundo pela seleção portuguesa com esse nome. Mas, não! Aqui é gente que acha que eu vou matar a pessoa só por causa do meu sobrenome!
    Foi uma confissão dele, mas, sei lá, nessa hora me deu um certo peso na consciência. O Doutor Álvaro continuou:
    – Agora pega essa porcaria desse atestado e paga o que deve pra Suellen.
    O Doutor Álvaro terminou a frase e logo aparece Tom, arrombando a porta do consultório, com uma arma empunhada:
    – Doutor Álvaro Boa Morte, o senhor está preso por distribuir atestado falso! Ah, e sinto muito pelo que o senhor passou.
    O Doutor Álvaro Boa Morte se entregou sem resistência. Tom o algemou e nós três fomos saindo do consultório. Ao passarmos pela recepção, o Doutor Álvaro se virou pra recepcionista e disse rapidamente:
    – Suellen, liga pro meu advogado. Aconteceu de novo.
    – Então o playboy da quebrada aí é um policial disfarçado?
    Eu fui me gabar pra recepcionista:
    – Policial, não mais, sou um detetive particular. E você caiu no meu disfarce! Haha! Quem está rindo agora?
    – Imagino o porquê de te mandarem embora da Polícia.
    Antes de eu retrucar essa frase dela, Tom me apressou para irmos embora. Tom foi levar ele à delegacia em seu carro Maurício Porteau e eu acompanhamos no carro do Maurício.
    Ao chegarmos na delegacia, Tom já levou o Doutor Álvaro para o Capitão Lester Gregade, que mandou irem para o interrogatório. O Capitão não queria que Maurício e eu fôssemos junto, mas Maurício insistiu dizendo que aquilo interessa ao caso dele. Então o Capitão deixou nós acompanharmos apenas na sala com a janela de vidro, onde as testemunhas ficam pra reconhecer os suspeitos.
    Maurício e eu entramos naquela sala. A janela de vidro dava para a sala de interrogatório. Nela, estavam Tom e o Capitão Gregade sentados de frente para o Doutor Álvaro e seu advogado, que já estava esperando na delegacia.
    Tom pôs o atestado falso que o Doutor Álvaro havia me dado em cima da mesa junto com um pen drive. O pen drive, provavelmente, teria a gravação da minha conversa com o Doutor Álvaro. Só que antes de Tom falar algo, o advogado do Doutor Álvaro interrompeu:
    – Olha, policial, a gente já sabe o que tem aqui. Eu sei de toda a história, sei desse detetive particular aí e o porquê dele ter ido atrás do meu cliente. É por causa do fechamento daquela padaria que foi sabotada com ratos. E ele tem razão, tem algo muito maior aí por trás.
    Caramba! Como ele sabe de tudo isso? Ele continuou:
    – Meu cliente vai entregar a pessoa que pediu o laudo fraudado dos pêlos de rato, se vocês deixarem ele só com a fiança mínima, em liberdade.
    O Capitão Gregade, duro como uma pedra, simplesmente respondeu:
    – O caso da Padaria Nova Caledônia é um caso particular do detetive Jerry Bocchio e não tem nenhuma relação com a Polícia. Não tem o que negociar aqui com isso.
    O advogado do Doutor Álvaro não perdeu o sorriso de alguém que está trucando:
    – Ah, Capitão! O senhor está deixando um peixe grande ir embora em troca de uns atestados pra faltar no serviço?
    – Se é um peixe grande desse jeito, porque seu cliente não teme uma represália contra ele?
    – Digamos que uma represália iria expor ainda mais a pessoa em questão.
    Tom e o Capitão saíram da sala por uns instantes e vieram falar comigo e com Maurício. Maurício, por ser o advogado da padaria, insistiu que eles aceitassem o acordo, já que o documento fraudado era a prova crucial. Eu sugeri o acordo porque tinha certeza que o nome da Vidente Solange seria dito (é, eu sei, ela sumiu da história até aqui, mas ainda tenho algo contra ela). Além disso, se o advogado disse que uma represália iria expor ainda mais, ou seja, a pessoa deve ser alguém da mídia.
    O Capitão pensou por mais um tempo e resolveu aceitar, com algumas ressalvas:
    – Muito bem, Doutor Álvaro, vamos aceitar o acordo. Porém, o senhor terá o passaporte apreendido até o fim da investigação e, se não for verdade, o senhor também será indiciado por obstrução da justiça.
    Mais uma vez, o advogado falou pelo Doutor Álvaro, enquanto o mesmo assinava o acordo:
    – Perfeito, Capitão! É muito bom negociar com vocês!
    – Sem enrolação, quem ordenou a confecção do laudo falso?
    – O homem que vocês procuram é um corretor de imóveis chamado Jorge Abílio.
    Jorge Abílio? O cara que queria comprar a padaria? O mesmo que tinha mandado o Zé Maria colocar os ratos na cozinha. O advogado continuou:
    – Ele costuma praticar esse negócio de especulação imobiliária num nível bem elevado, ou melhor, num nível bem baixo. Ele faz de tudo pra abaixar o preço do imóvel que ele quer comprar. No caso em questão, ele mandou um rapaz com intolerância a lactose comer na Padaria Nova Caledônia uma coisa com muita lactose pra fazer ele passar mal. No hospital, ele mandou o meu cliente assinar esse laudo fraudado dizendo que o rapaz tinha comido algo com pêlos de rato. Ele usou esse laudo tanto pra chamar a Vigilância Sanitária, quanto como prova no processo contra a Padaria Nova Caledônia, fazendo o preço do imóvel despencar.
    Cassetada! Que plano diabólico! O Capitão Gregade saiu correndo da sala de interrogatório e expediu mandados de busca e apreensão contra o Jorge Abílio e o cliente que processou a padaria. O advogado Maurício Porteau saiu correndo com o celular na mão pra falar com o Seu Rogério sobre o caso. Enquanto isso, eu fiquei lá, só pensando que talvez ainda tinha uma peça faltando.
    Jorge Abílio é um corretor de imóveis. O imóvel não vai pra ele, e sim para quem o contratou. Será que não é essa pessoa, ou empresa, que o contratou quem está por trás de tudo? Um mandante? Eu fui para a casa com essa dúvida ainda. Mas deixei que a Polícia se encarregasse do caso. Tom e o Capitão Gregade são competentes pra tocar isso. Se houver um mandante, eles vão descobrir.
    No dia seguinte, fui ao meu escritório. E, do lado de fora, me esperando, estava o Seu Rogério, com uma cara não muito boa. Preocupado com o caso, eu já fui perguntando:
    – Seu Rogério! O que aconteceu? Ainda não retiraram o caso?
    – Não, J.B.! A promotora retirou a queixa. Estamos só esperando a Vigilância Sanitária emitir a papelada pra reabrirmos a padaria. Provavelmente na semana que vem.
    – Que ótimo, Seu Rogério! Por que essa cara então?
    Seu Rogério pegou o celular dele, deu o play num vídeo e virou o celular para mim. Era um vídeo do programa da Vidente Solange. Ela estava muito exaltada falando com o apresentador:
    – Antes de eu começar o programa, eu preciso falar uma coisa pra vocês. Fernando, você já ouviu falar daquele detetive particular chamado Jerry Bocchio, né?
    – Aquele que foi responsável pela prisão do Roninho? Sim, conheço.
    – Pois então, os astros me disseram que ele é um homem que tem pacto com encostos. É assim que ele consegue prender gente importante. Minha dica pra essa semana é: não contratem serviços do detetive Jerry Bocchio! Caso contrário, um encosto vai entrar na sua vida e permanecer para sempre. E não existe simpatia para reverter essa situação.
    Que droga! Nunca pensei que ser parecido com o John Constantine seria tão ruim para os negócios!
    Continua...
  • Jerry Bocchio e os Ratos na Padaria – Capítulo I: Tudo Bem (ou Quase)

    Jerry Bocchio e os Ratos na Padaria – Capítulo I: Tudo Bem (ou Quase)
    Meu nome é Jerry Bocchio. Eu sei que já falei isso aqui antes, mas, se essa é a primeira vez que você vê uma história minha, eu sou um detetive particular. Costumo pegar casos que a Polícia não dá importância. Brigas de vizinhos, gatos de água, luz e internet, pichadores, árbitros de futebol envolvidos em esquemas de apostas, coachs quânticos etc.
    Meu nome começou a ficar mais em evidência depois que eu descobri e ajudei a expor um diretor de TV que queria sabotar o próprio programa. Eu comecei a ser chamado para casos cada vez mais interessantes, mais desafiadores, e não apenas casos de suspeita de traição. O problema é que, juntamente com essa alavancagem do meu nome, veio também uma paixão.
    E por que isso seria um problema? Porque, mesmo parecendo ser correspondido, ela teve que se mudar para outra cidade para alavancar a carreira dela. Como ela é uma pessoa tão espírito livre quanto eu, não tentei impedí-la. Talvez dois espíritos livres não sirvam pra viver juntos mesmo. Enquanto isso, fico apenas eu aqui, com a minha rotina de detetive.
    Todo dia, antes de ir para meu escritório, eu dou uma passada na Padaria Nova Caledônia para tomar meu café da manhã: um copo de café com leite e um pão com manteiga na chapa. Um café da manhã com todos os nutrientes necessários para um dia de investigação. O dono da padaria, o Seu Rogério, me atende com toda camaradagem que só um dono de padaria tem pelos seus clientes.
    Um belo dia, fui seguir a minha rotina matinal normal. Cheguei na padaria e vi que o lugar estava cheio. Seu Rogério veio até mim para atender, já com o meu pedido na ponta da língua. Eu, vendo toda a movimentação da padaria, comentei com o Seu Rogério:
    – Olha, até que a padaria vai bem mesmo depois daquela gafe que eu cometi com o programa de fofoca.
    – Que isso, J.B.! Aquilo ajudou a padaria a atrair ainda mais clientes.
    – Como?
    – Agora tem muito paparazzi e fã de fofoca consumindo aqui. Eu até coloco nesses programas matinais de TV, ao invés de noticiários.
    – Que legal, hein, Seu Rogério? Pelo menos pra alguma coisa aquela aparição em programa de fofoca serviu.
    – É, mas não foi só isso não. Quando aquela sua amiga influenciadora veio aqui atrás de você, ela atraiu seguidores pra cá também. Eu tive até que deixar duas mesas do lado da janela arrumadas pra parecer mesas de novela só pra eles tirarem fotos pro tal do Instagram.
    Seu Rogério apontou para as mesas ao lado da janela. Acima da janela havia um aviso escrito "mesas instagramáveis". Ele voltou a dizer, dando risada:
    – Quem deu essa ideia foi a Renatinha, do caixa. Essa molecada inventa cada coisa, né?
    Nós dois estávamos conversando enquanto eu ia tomando café. Eu contava para ele as descobertas do meu último caso quando uma senhora chegou ao meu lado. Era uma senhora de idade já, parecia ter uns 60 anos, tinha o cabelo curto ao estilo Joãozinho, tingido de loiro, meio gordinha e andava com um ar de autoridade forçada, como se ela fosse um personagem do programa "Vai Que Cola". Eu estava reconhecendo ela, ela parecia ser aquela vidente que viralizou na internet pelo modo ranzinza como ela fala com as pessoas que ligam na rádio onde ela trabalha pra pedir conselhos. O nome dela é Solange Maria, mas a rádio a apresenta como a Vidente Solange.
    Ela chegou cortando o assunto entre o Seu Rogério e eu querendo falar com o Seu Rogério:
    – O senhor é o dono do estabelecimento?
    – Vidente Solange! Que prazer recebê-la! Sou eu sim!
    – Tá, tá, tá bom! Olha, deixa eu ir direto ao assunto. Eu recebi uma mensagem dos espíritos falando que você tem uma oportunidade de ganhar dinheiro em vista.
    – Eles estão afiados, hein? Só que pra isso eu teria que abrir mão da padaria, então eu não aceitei.
    – Você é idiota, é? Esse lugar aqui é cheio de encosto! Sai daqui antes que a oportunidade vai embora.
    Rapaz, essa mulher é ranzinza mesmo! Pensei que era só uma personagem. Eu acabei entrando na conversa pra ver se a mulher se acalmava:
    – Olha, dona vidente, talvez esse negócio de encosto não seja tão ruim.
    – Como não? Você é lesado, é?
    – Bom, aqui tem bastante encosto nas cadeiras pras pessoas não curvarem tanto as costas. Já é um alívio.
    A Vidente Solange me olhou no fundo dos olhos como uma professora dos anos 80 que acabou de pegar o aluno colando na prova, pronta pra dar a reguada, e o Seu Rogério caiu na gargalhada. Depois de se recuperar do riso, o Seu Rogério disse para a vidente:
    – Não se preocupa com isso não, o único encosto que eu tenho aqui é o Zé Maria. Né não, Zé Maria?
    Zé Maria, o chapeiro da padaria, solta um riso meio constrangido. A Vidente Solange volta a falar:
    – Você foi avisado.
    Ela simplesmente pegou as coisas e saiu. Essa cena ligou o meu alerta. Durante meus anos de experiência como investigador, eu já vi muita cena parecida que se tratava de uma ameaça disfarçada. Então, pra tirar a dúvida, eu perguntei para o Seu Rogério:
    – Seu Rogério, do que se tratava esse aviso dela?
    – Olha, J.B., eu vou te falar porque você é amigo aqui, mas não espalha pra ninguém, beleza?
    – Tudo bem!
    – Um cara veio aqui semana passada me fazendo uma proposta pra comprar a padaria. Ele me ofereceu trezentos mil.
    – Rapaz! E você fez o que?
    – Eu recusei, lógico! Primeiro, porque o valor que ele me ofereceu foi muito abaixo do que a padaria vale. Segundo, porque eu não quero me livrar da padaria, aqui é a minha vida. E terceiro, se eu mandar todo mundo aqui embora, do nada, como eles ficam?
    – Que estranho! Como que essa vidente sabia disso?
    – Ué, J.B., ela é vidente! Ela deve ter mesmo esse negócio de paranormal aí, senão, não tava na rádio.
    – Não, Seu Rogério! Esse negócio de paranormal aí não existe. Ela só está na rádio porque as pessoas gostam de acreditar que a vida pode ser resolvida simplesmente escrevendo o nome de uma pessoa amada num pedacinho de papel, ou bebendo água com limão, ou esperando o dia onde os astros se alinham etc. Quer saber? Me dá a conta aí! Vou dar uma pesquisada sobre ela no meu escritório.
    – Eita! Esquenta com isso não, J.B.!
    – Não, não, Seu Rogério! Essa mulher ligou um alerta na minha cabeça.
    Voltei para o meu escritório para procurar algo sobre essa Vidente Solange. Durante o dia não deu tempo, pois eu trabalhava em mais dois outros casos: Um músico frustrado que desconfiava que sua música foi plagiada por uma outra banda, também não tão conhecida assim, e um vendedor ambulante que desconfiava que seus aparelhos TV Box estavam sendo furtados.
    No final do expediente foi onde eu consegui tirar tempo pra fazer a pesquisa. A pesquisa levou mais tempo do que eu esperava, eu demorei uns dois dias para ajuntar todas as informações que consegui. Mas eu descobri algumas coisas interessantes.
    Nos anos 90, a Vidente Solange havia sido desmascarada ao vivo, em um programa de auditório de domingo, no horário nobre. Levaram ela para um suposto presídio desativado onde ela dizia ver coisas horríveis. Ela fazia caras e bocas, gritava, babava e suplicava como num filme de terror. No final, o dono do local disse que aquilo não era um presídio desativado, era um shopping center desativado.
    Após esse episódio, ela sumiu por um bom tempo, mas, por incrível que pareça, tinha alguns seguidores de suas dicas astrais que a tratavam como o novo Messias. Aí, com a chegada das redes sociais, ela começou a fazer vídeos, fazer mais seguidores que, ou se esqueceram do episódio nos anos 90, ou inventavam desculpas esfarrapadas pra justificar o mico. Depois de um tempo, foi contratada pela Rádio Aurora Brasil, onde trabalha atualmente.
    Aqueles tais "encostos" que ela se referia seriam espíritos maus que gostam de atrapalhar a vida das pessoas. Só que nunca fica claro quem seriam esses "encostos". Seriam almas de pessoas ruins durante a vida? Ela sempre deixa ambíguo.
    A linha de raciocínio dela também é bem ambígua: Uma gororoba de astrologia, com psicologia positiva, com aliens, com rituais de várias religiões diferentes. Algo muito parecido com o que faziam na serie "Supernatural". A diferença é que "Supernatural" se vende como ficção e não fica mandando o público seguir seus conselhos.
    Eu acho que já ficou bem claro aqui que eu não acredito nisso, certo? Não que eu tenha algo contra quem acredita, mas não gosto quando quem acredita fica obrigando as pessoas ao redor dela a agirem de acordo com a crença dela. Se existe mesmo alguma força cósmica superior, isso sim seria algo que a irritaria.
    Porém, parece que as pessoas que usam as redes sociais dessa Vidente Solange agem exatamente assim. Vi depoimentos de pessoas que terminaram relacionamentos, terminaram amizades, demitiram funcionários ou pediram demissão da empresa, mudaram seus filhos de escola, alguns até mesmo diziam ter expulsado familiares por causa das crenças no tal do "encosto".
    Vi até mesmo um divulgador científico, que também era influenciador, que fazia vídeos refutando muitas coisas que a Vidente Solange divulgava. Só que ele tinha poucos vídeos e sumiu depois de um tempo. E ele era muito odiado pelos seguidores da Vidente Solange, diziam que ele fazia os vídeos com a ajuda do "encosto". Esse ser, pelo visto, é onipotente.
    Depois de anotar tudo isso, deixei para ir falar com o Seu Rogério. Esperei o dia amanhecer e fui na Padaria Nova Caledônia no horário de sempre. Só que, quando eu cheguei lá, uma surpresa desanimadora: a padaria estava fechada! E na porta havia um aviso que ela foi fechada pela Vigilância Sanitária.
    Não pude acreditar de primeira, então, fui até uma das janelas para olhar se havia acontecido algo dentro da padaria. As luzes estavam quase todas apagadas e o Seu Rogério estava no balcão, cabisbaixo, conversando com um homem de terno e gravata.
    Eu gritei o nome do Seu Rogério. Ele disse que não queria falar comigo no momento, mas eu insisti. Seu Rogério é meu amigo e eu não queria deixar ele sozinho nessa situação. Depois de muita insistência, Seu Rogério abriu a porta de trás para eu entrar. Enquanto ele ia me levando até o balcão, eu perguntei o que aconteceu e o Seu Rogério, após dar um grande suspiro, me respondeu:
    – Um cliente chamou a Vigilância Sanitária falando que ingeriu pelo de rato na comida e pegou uma infecção alimentar.
    – Nossa, Seu Rogério! Como isso aconteceu? Eu vejo você ligando pra dedetização frequentemente.
    – Sim, semana passada mesmo eu contratei, mas, por algum motivo, a Vigilância Sanitária achou um ninho de ratos dentro do meu estoque, onde eu guardo a farinha de trigo.
    Seu Rogério e eu chegamos ao balcão, onde o homem engravatado aguardava. Ele era um homem alto, com o cabelo raspado, um cavanhaque e segurava uma maleta. Na frente dele, em cima do balcão, um calhamaço de papéis que parecia ser um contrato. O homem me reconheceu por algum motivo e foi se apresentando:
    – Detetive Jerry Bocchio! Que prazer em conhecê-lo pessoalmente! Meu nome é Jorge Abílio, sou corretor de imóveis.
    Ele me deu a mão e eu o cumprimentei, mas depois me toquei de uma coisa:
    – Seu Rogério, você vai vender a padaria?
    Seu Rogério viu minha cara de preocupação e respondeu:
    – Sinto muito, J.B., eu não tenho muito o que fazer nessa situação. A família do rapaz está processando a padaria.
    – Mas você disse que trezentos mil é muito abaixo do valor real da padaria.
    Então, o corretor se intrometeu na conversa todo pomposo:
    – Não é mais trezentos mil. A gente está comprando por cem mil agora. Economia é assim, né?
    Seu Rogério, tentando tirar graça da situação, e falhando por causa de falta de forças pra isso, respondeu:
    – É, J.B., bem que a Vidente Solange me avisou, né?
    Nesse momento, vendo o Seu Rogério abatido e o corretorzinho de meia tigela dando risada, juntamente com a menção àquela picareta, que eu já odeio só pelo fato de tudo resultar nisso, eu fiquei irritado. Eu precisava fazer algo para impedir isso. Eu olhei no fundo dos olhos do Seu Rogério e disse:
    – Seu Rogério, não venda a padaria!
    – Mas, J.B.! Como não?
    – Eu vou livrar você dessa. Eu tô sentindo cheiro de coisa errada no ar, e não é esse perfume de cara metido a macho que o corretor tá usando não.
    O corretorzinho se meteu de novo:
    – Qualé, detetive! Eu sei que você é bom no que faz, mas não tem o que investigar aqui não. A Vigilância Sanitária achou o ninho dos ratos e o cliente fez o exame que detectou os pêlos de rato. Pelo que eu ouvi da história que o Seu Rogério me contou, a Vidente Solange acertou de novo. Você deveria ouvir o programa dela, te ajudaria a alavancar sua carreira de detetive.
    – Eu não estou dizendo que ela errou não, Jorge. Ela havia dito que tem encosto nessa padaria. Ela só não contava que o encosto sou eu.
    – Hahahaha! Você é muito engraçado, detetive! Só toma cuidado que os encostos não gostam de ser desafiados.
    – Você, pelo visto, conhece bastante do assunto, Jorge.
    – Claro! Eu sigo as recomendações dela e estou aqui agora.
    – Destruindo sonhos dos outros? Os astros, ou espíritos ou os sei-lá-o-quê devem sentir muito orgulho de você.
    – Olha, eu não destruí sonho de ninguém. Foi dado um aviso a ele e ele não ouviu. Eu sou só o executor, não tenho culpa nessa. E então, Seu Rogério? Falta só a sua assinatura.
    Essa última fala do corretorzinho irritou o Seu Rogério. Ele pegou o contrato de cima do balcão e o rasgou no meio.
    – Dá o fora da minha padaria, seu moleque!
    Num tom meio debochado, o corretorzinho se virou e foi embora.
    Seu Rogério e eu ficamos um tempo sozinhos na Padaria Nova Caledônia. Pra agradecer a minha ajuda, ele pediu um café da manhã por delivery para entregar lá para nós dois. Quando chegou, nós sentamos em uma das mesas para tomar e o Seu Rogério, um pouco mais em si, começou a falar:
    – J.B., e agora? Você acha mesmo que consegue? O julgamento é daqui a algumas semanas.
    – Tem algo muito errado aí, Seu Rogério. Você dedetizou a padaria na semana passada e já apareceram ratos com ninho feito e tudo? Além disso, o tal do corretor aí é seguidor da vidente, é muita coincidência.
    – Ah, mas ela tem muitos seguidores.
    – Seu Rogério, eu não acredito nessa papagaiada. Tem coisa errada aí e eu vou descobrir.
    Seu Rogério abriu um sorriso amigável e respondeu:
    – Muito obrigado, J.B.! O que eu puder fazer pra te ajudar, é só me falar.
    Eis aí meu novo caso. Alguém quer prejudicar meu amigo e eu preciso saber quem.
    Continua...
  • Jerry Bocchio e os Ratos na Padaria – Capitulo II: Uma Visita Não Tão Inesperada

    Jerry Bocchio e os Ratos na Padaria – Capitulo II: Uma Visita Não Tão Inesperada
    Quando eu saí da Padaria Nova Caledônia, fui até meu escritório já pensando em uma estratégia de investigação no meio do caminho mesmo. Seu Rogério estava quase desistindo do que ele considera ser a sua vida ideal e é meu dever ajudá-lo.
    Eu já vi alguns casos que envolvem pessoas com supostos poderes sensitivos e, sinceramente, nunca me convenceram. Essas pessoas mais atrapalham do que ajudam, pois, quando metem essa explicação metafísica, as outras pessoas simplesmente desistem de continuar procurando.
    Quando cheguei ao escritório, comecei a pensar em cenários para o acontecido. Lembrando que, uma semana antes dos ratos aparecerem, Seu Rogério havia mandado dedetizar a padaria. Então, como esse ninho de ratos apareceu lá? Tentando imaginar cenários para esse acontecimento, escolhi começar por investigar conversando com os funcionários da padaria. Talvez eles teriam algo a dizer, testemunhado algo etc.
    Falar com aquele cliente que ingeriu os pêlos de rato e ficou com infecção alimentar também seria uma boa.
    Liguei para o Seu Rogério e pedi para ele tentar chamar seus funcionários para conversar, mas ele não estava atendendo na hora. Quando o Seu Rogério retornou a ligação, uma meia hora depois, ele estava empolgado pra saber se eu já tinha algo:
    – Alô.
    – Alô, J.B.? Aqui é o Rogério. Você tinha me ligado. Já tem novidades?
    – Ainda não, Seu Rogério. Eu estou só no começo da investigação.
    – Então por que me ligou?
    – Eu queria começar falando com os seus funcionários. Será que o senhor poderia reunir eles pra eu fazer umas perguntas?
    – Xiiii, depois de tudo o que aconteceu, acho difícil. Alguns já estão até tentando arrumar um novo emprego. Você acha que foi um deles?
    – Não! Só pra saber se alguém notou algo estranho ou testemunhou alguma coisa.
    – Tá bom, então. Vou ver o que consigo fazer. Venha pra padaria daqui umas duas horas.
    Ótimo! Agora já tenho por onde começar. Além do Seu Rogério, trabalham também na padaria o chapeiro, Zé Maria, a recepcionista de caixa, Renatinha, o garçom, Rodolfo, as duas atendentes do balcão, Valéria e Marisa, e os auxiliares da cozinha que ajudam o Seu Rogério, Tião e Caçula.
    Enquanto preparava minhas coisas, ouvi uma batida na porta. Poderia ser um cliente, mas, como já me comprometi a ajudar o Seu Rogério nessa, fui abrir a porta para dispensar a pessoa. No momento que eu abri a porta, uma surpresa: era a Vidente Solange.
    Ela agora estava com um ar menos agressivo do que a primeira vez que eu a vi na padaria. Porém, ainda de um jeito muito intrusivo, apenas me deu um "boa tarde" e foi entrando sem minha autorização. Passou pela porta, sentou-se à minha mesa, ficando de costas para mim, que estava na porta, e começou a falar:
    – Detetive Jerry Bocchio, você está investigando o que aconteceu na Padaria Nova Caledônia, não?
    Eu não fui até a mesa, fiquei parado na porta pra ver se ela entendia que eu estava de saída. Falei pra ela de lá mesmo:
    – Sim, senhora Solange. Inclusive eu estou indo até lá agora mesmo.
    – Suas habilidades são inúteis para esse caso, detetive. Estou aqui para te alertar para não dar prosseguimento à investigação.
    – Olha, eu sei que muita gente gosta do que a senhora fala e tudo mais. Só que eu não acredito nessas coisas de encosto aí não.
    – Pois não adianta nada você não acreditar. Eles agem do mesmo jeito.
    Esse pessoal é estranho. Quando é pra acontecer coisas boas, tipo ganhar dinheiro, arrumar um romance, melhorar a saúde, dormir oito horas por dia ou poder comer besteira todo dia sem sofrer consequências, aí você tem que acreditar direito. Se você tiver um pingo de dúvida, não acontece. Agora, pra acontecer coisas ruins, aí nem precisa acreditar que acontece. O Deus dessas pessoas deve ser um vilão de novela, só pode.
    – Posso saber o que esses tais "encostos" farão?
    A minha pergunta fez a Vidente Solange se levantar e virar de novo para mim, com o pescoço curvado para frente, fazendo uma posição de corcunda. Ela começou a falar mais agressivamente, parecendo que queria me impor medo. Foi de um modo tão brusco que acabou me assustando:
    – Nossa! Um deles te possuiu agora?
    – Detetive, não caçoe da situação! Os encostos são ardilosos! Não se pode saber o que passa na cabeça deles!
    – Aaaah! Eles têm cabeça?
    – Sim, oras! Eles são espíritos maus.
    Não entendi a relação entre ser espírito mau e ter cabeça. Mas ela disse de um modo tão convincente que, na hora, parecia ter lógica. Aí eu fiz mais uma pergunta que eu julgava importante:
    – Ué, então porque não chama eles de "espíritos maus" logo? Esse negócio de "encosto" deixa um pouco confuso.
    – Eu que costumo chamar eles de "encosto".
    – Mas por quê?
    – É porque... Porque... Ah, não interessa! O que interessa é que se você prosseguir nessa investigação, eles vão entender como desafio.
    – Olha, dona Solange...
    – Vidente Solange!
    Pera aí! Ela faz questão que chamem ela de "Vidente Solange"? Vidente virou coisa tipo doutor, professor, juíz etc.? Ai, fazer o quê, né?
    – Tá, tá bom! Vidente Solange! Há alguns segundos você me falou que não dá pra saber o que se passa na cabeça deles. Agora você me diz que eles vão entender como desafio? Agora eu estou entendendo menos ainda.
    A Vidente Solange parou por uns instantes com o dedo indicador no queixo, como se estivesse tentando lembrar de algo. Quando ela voltou pra conversa, só foi pegando a bolsa dela e disse, ou melhor, gritou, do mesmo jeito que ela faz com os ouvintes da rádio:
    – Ah, pare de fazer perguntas! Que saco! Você quer saber de tudo, é? Me dá licença que eu preciso... Preciso... Ir pra rádio.
    – Ué, seu programa só passa de noite.
    – Pare de fazer perguntas!
    – Mas isso não foi uma pergunta.
    – Chega! Olha só, você me irritou tanto com as suas perguntas que eu quase esqueci uma coisa.
    A Vidente Solange olhou no fundo dos meus olhos com um olhar sério e disse de forma dramática, como se fosse um apresentador de um programa de mistérios, tipo "O Homem do Sapato Branco":
    – Você foi avisado!
    Após isso, ela foi embora, batendo com força a porta do escritório. Confesso que o modo como ela falou me assustou um pouco. Ela é bem convincente no modo de falar essas coisas, afinal, já são vários anos trabalhando com isso, não é mesmo?
    Mas eu não me importei. Nem ela parecia direito saber o que são esses tais "encostos". E pra ser bem sincero mesmo, eu já estava meio que esperando essa visita da Vidente Solange no meu escritório. Não sei especificar direito o porquê disso, talvez seja porque ela quer garantir que acertou a previsão dela na padaria não deixando ninguém investigar. Além disso, ela já foi desmascarada ao vivo anteriormente, talvez um investigador cause um certo trauma nela... Ou será que eu também tenho "poderes sensitivos"? Uuuhh! Mirei no Sherlock Holmes e acertei no John Constantine!
    Brincadeiras à parte, olhei no meu celular que já estava quase na hora de eu sair. Peguei meu caderno, não peguei minha jaqueta porque estava um calor infernal (já falei que o clima do Brasil não deixa eu ter estilo?) e fui em direção à Padaria Nova Caledônia.
    Continua...
  • Jerry Bocchio e os Ratos na Padaria – Capitulo III: Confissão Cedo

    Eu fui até a Padaria Nova Caledônia depois daquela visita estranha da Vidente Solange. Aquela visita dela me deixou assustado na hora, mas no meio do caminho fui pensando sobre aquilo e me pareceu mais uma ameaça do que um aviso.
    Enfim, quando cheguei na padaria, Seu Rogério estava me esperando na porta, do lado de fora, ao lado de um homem de um terno grafite, gravata azul, cabelo penteado pra trás, uma pasta marrom na mão e um sorriso típico de advogado. Se você não reconhece sorrisos advocatícios, eu não posso ensinar, somente detetives experientes, como eu, conseguem identificar um de longe. Quando encontrei com o Seu Rogério, ele me apresentou o homem:
    – E aí, J.B.! Que bom que você veio! Esse aqui é o doutor Maurício Porteau, ele é o advogado da padaria.
    – Boa tarde, detetive! É um prazer conhecê-lo. O Seu Rogério me falou muito bem de você.
    Advogados! Eu não gosto de fazer meu trabalho com um deles por perto. Eles ficam toda hora me censurando. "Ain, não pode pressionar tanto o interrogado"; "Ain, isso é fazer ele criar provas contra si mesmo"; "Ain, você é uma pessoa só, não tem como fazer a estratégia do 'tira bom e tira mau'". Mesmo com a tentativa de lisonja e a mão estendida do advogado, não aguentei e falei para o Seu Rogério:
    – Poxa vida, Seu Rogério! Você trouxe um advogado?
    – Ele me disse que seria melhor pra não cometermos excessos com os funcionários.
    – Era justamente isso o que eu temia.
    – Mas ele tá certo, J.B.! Agora cumprimenta ele aí pra não ser mal educado!
    – Ah, tá bom! Igualmente.
    – Cumprimenta direito!
    Acabei tendo que apertar a mão do advogado.
    – O prazer é todo meu.
    O advogado só deu uma risada e disse:
    – Não se preocupa que eu não vou te atrapalhar.
    – Hum... Isso é o que veremos.
    Nós três entramos na padaria. O lugar estava apenas com algumas luzes acesas na área das mesas, onde estavam todos os funcionários lá. Zé Maria, Renatinha, Rodolfo, Valéria, Marisa, Tião e Caçula, todos sentados às mesas da padaria, conversando entre si. Todos eles me pareciam preocupados. Com o quê? Aí eu já não consigo dizer.
    Seu Rogério parou à frente de todos e chamou a atenção deles, que se silenciaram quase que instantâneamente. Foi então que ele começou a explicar a situação:
    – Pessoal, olha aqui. Eu sei que todo mundo aqui conhece o J.B., ele é um detetive particular que está investigando sobre o incidente com os ratos. Ele tem dúvidas sobre o que aconteceu e quer falar com vocês se vocês viram algo estranho no dia.
    Logo após as palavras do Seu Rogério, a Renatinha, a caixa da padaria, falou para mim num tom de conformismo:
    – Olha, Jerry, eu sei que você é amigo do Seu Rogério e quer ajudar, mas isso só aconteceu porque o Seu Rogério não deu ouvidos pra Vidente Solange. Isso é coisa dos encostos.
    A fala da Renatinha foi a deixa pra eu começar:
    – Renatinha, você é fã da Vidente Solange?
    – Sim, sigo ela em todas as redes sociais. Você nunca viu o que eu compartilho dela?
    – É, eu evito ficar nas redes sociais porque a rolagem da tela me dá tontura. Enfim, isso o que a Vidente Solange fala é só mídia e...
    Então, o advogado Maurício, dando uma de advogado, me interrompeu:
    – Detetive, desculpa interromper, mas não é bom ficar duvidando da fé das pessoas, hehehe. Pelo menos não agora.
    Ah, mas como esses advogados são enxeridos! Eu não aguentei a interrupção e acabei respondendo:
    – Eu sabia que uma hora ou outra você ia acabar fazendo isso.
    – Não, detetive! É que pode dar mais problemas pra padaria.
    – Então se eu vejo ela sendo ludibriada por alguém eu fico impedido de avisar?
    – O senhor não tem provas da enganação.
    – Como não tenho provas? É só olhar o passado dessa vidente. Ela foi desmascarada ao vivo na TV aberta. Além disso, ela foi no meu escritório hoje, antes de eu vir pra cá e tentou usar essa mesma história pra cima de mim.
    A Renatinha deu um grito, assustada com o que eu disse:
    – Ai, meu Deus! Os encostos estão atacando todo mundo! Eu preciso me benzer!
    Eu precisei voltar pra falar com a Renatinha, pra tentar acalmá-la:
    – Não, Renatinha! Não cai na conversa dessa mulher! Nem ela sabe explicar o que é um encosto. Quando você pergunta algo, ela se irrita e sai correndo.
    Então o advogado interrompeu de novo:
    – Detetive, você suspeita que a Vidente Solange está envolvida com isso tudo?
    – Sim! É muita coincidência isso tudo acontecer assim, não?
    Foi então que Rodolfo, o garçom, tomou a palavra:
    – Eu acho que você tá desconfiando da pessoa errada, Jerry. Eu ficaria de olho é naquele moço que estava tentando comprar a padaria.
    – Por quê?
    – Uns dias antes dele fazer a primeira proposta pro Seu Rogério, ele veio aqui, pediu só um refrigerante e ficou uma hora inteira só com o refrigerante. Ninguém bebe um refrigerante em uma hora inteira. Então eu vi que ele ficava só sentado, tirando fotos com o celular.
    Seu Rogério falou logo em seguida:
    – Poxa vida, Rodolfo! Você viu o cara tirando foto aqui e não me disse nada!
    – Ele estava no cantinho instagramável. Não falei porque tem um monte de gente que tem mania de fazer isso lá. Se eu soubesse que ia terminar nisso, teria falado.
    A revelação de Rodolfo me deixou um pouco frustrado. Não sei, algo em mim queria que a Vidente Solange fosse a culpada. Aí eu iria desmascará-la mais uma vez. Mas enfim, pra ter mais certeza, perguntei a Rodolfo:
    – E por que você acha que devemos suspeitar dele?
    – É que teve mais gente que viu ele depois. Eu vi o Zé Maria conversando com ele depois de sair do trabalho outro dia.
    Caçula, um dos ajudantes de cozinha, tomou a palavra também:
    – É! Agora que eu me lembrei, ele tentou me abordar pra falar comigo também, mas eu estava com o fone de ouvido e o ônibus tinha acabado de chegar no ponto. Então eu só ignorei e fui embora.
    Zé Maria, o chapeiro, estava encolhido. Parecia que não queria falar nada. Como Rodolfo disse que ele falou com o corretor imobiliário, eu precisei chamá-lo pra conversa:
    – Zé Maria, o que o tal corretor disse pra você?
    Zé Maria, relutante, respondeu:
    – Nada, eu não dei atenção pra ele.
    Bom, parece que eu estava errado. Depois de perguntar se mais alguém tinha algo a dizer e não obter resposta, chamei o Seu Rogério e o advogado pra falar. Seu Rogério dispensou os funcionários e agradeceu pela ajuda.
    Todos foram se levantando e saindo, menos o Zé Maria. Parecia que ele ainda queria dizer algo. Ele esperou todos os outros funcionários saírem e depois veio até nós três, Seu Rogério, o advogado e eu. Ele parecia muito acanhado e com cara de arrependimento. Seu Rogério percebeu o modo como ele estava e perguntou:
    – Zé Maria, está tudo bem?
    – Não, Seu Rogério. Na verdade, eu queria falar sobre a minha conversa com o corretor. Só que eu queria que o senhor me escute até o fim antes de qualquer coisa.
    – OK, sem problemas.
    Zé Maria deu um suspiro e começou a falar:
    – O corretor veio falar comigo dizendo que percebeu que eu ficava irritado com as piadas que você ficava fazendo comigo. Eu tentei falar que não ligava muito, mas ele insistiu. Falou pra mim que entendia de psicologia e mais umas outras coisas. Ele acabou me convencendo a querer dar o troco. Então ele me deu uma caixa e mais quinhentos reais e disse pra eu deixar ela aberta na cozinha. Eu não aceitei de primeira, mas ele ficou insistindo de novo, falando que era só uma brincadeira e coisa e tal. E eu acabei aceitando. Eu coloquei a caixa aberta e só depois que eu vi que saíram dois ratos de dentro dela.
    Então Zé Maria juntou as mãos em forma de prece e olhou de um modo dramático para o Seu Rogério:
    – Eu não sabia que ia acabar nisso! Desculpa aí, por favor!
    Seu Rogério pareceu chocado com a confissão de Zé Maria. O silêncio de Seu Rogério induziu o advogado a perguntar:
    – Zé Maria, quando isso aconteceu?
    – Foi dois dias antes da Vigilância Sanitária aparecer. Eu juro que não sabia o que tinha na caixa!
    Esses advogados são muito frios! Num momento desses esse cara vai perguntar sobre data? Seu Rogério só se sentou numa cadeira e disse:
    – Zé Maria, é melhor você ir pra casa agora. Depois eu te chamo pra conversar.
    Zé Maria só foi embora deixando nós três na padaria. Foi então que o advogado tentou começar o assunto:
    – Olha, Seu Rogério, isso não é tão ruim quanto parece. O detetive Jerry Bocchio, no final está certo, alguém veio sabotar a padaria. É só termos como provar e eu consigo convencer o rapaz a cancelar o processo. Foi bom o detetive ter pedido isso.
    Eu precisei dar a minha opinião sobre o assunto:
    – Não sei não, doutor Maurício! Isso ainda está estranho, parece que está faltando algo.
    – Você ainda está desconfiado da vidente, detetive?
    – Não sei, eu só não consigo enxergar uma motivação pro corretor fazer isso do nada.
    – Como não? Ele queria baratear o preço da padaria porque o Seu Rogério não quis vender. Isso aí é uma coisa que alguns corretores imobiliários desonestos, pra não dizer criminosos, têm costume de fazer.
    – Sim, eu sei. Só que eles fazem isso a mando de alguém, alguém que talvez esteja de olho na padaria.
    – Hum... Acho que eu sei o que está acontecendo. Você está frustrado porque a solução foi fácil demais. Bom, eu não tenho tempo pra discutir teoria da conspiração. Eu vou correndo pro meu escritório pra encomendar uma reunião com os representantes do rapaz que está processando a padaria.
    Então o advogado pegou a pasta dele e foi embora. Eu só fiquei vendo o Seu Rogério sentado, com cara de decepção com o que havia ouvido. Achei melhor acompanhar o Seu Rogério até sua casa e encerrar o dia por ali mesmo.
    Durante a ida até a casa do Seu Rogério, ele me disse que não sabia o que fazer em relação ao Zé Maria. De um lado, ele entendeu sobre as piadas irritarem ele. Mas por outro, ele disse que o Zé Maria além de ser um funcionário um pouco displicente, ainda ter aceitado aquilo deixou o Seu Rogério irritado.
    Eu só fui para o escritório no dia seguinte. Eu ainda estava com aquela sensação de que estava faltando algo no caso. Parecia que tinha uma conexão que eu estava deixando de lado. Mas, como sugeriu o doutor Maurício, talvez fosse só um desejo de que tenha algo mais mesmo, devido a tudo ter se resolvido muito fácil.
    Eu estava matutando sobre isso no meu escritório quando, lá pelas dez da manhã, ouvi um batido forte na minha porta. Fui atender e era o doutor Maurício, com uma expressão mais séria. Eu me espantei com a presença dele.
    – Doutor Maurício! Deu tudo certo lá?
    – Eu preciso falar com você, detetive!
    – Eita, que cara é essa? Eu não fiz nada não, só levei o Seu Rogério pra casa.
    – Acho que você está certo, tem algo mais nessa história.
    Depois que ele disse isso, eu deixei ele entrar. Nós fomos até minha mesa, ele pôs a pasta dele em cima e puxou um papel de dentro.
    – Eu fui falar com os representantes do rapaz que está processando a padaria. Eles disseram que não iriam retirar o processo. Então eu pedi as provas que eles teriam e eles me deram uma cópia do exame que ele fez.
    – Aquele que dizia que ele ingeriu pêlos de rato?
    – Esse mesmo! O exame não detalha muita coisa, mas olha o responsável pelo exame.
    – Nossa! Ele tem um número no lugar do nome!
    – Não! Esse é o número do registro no Conselho de Medicina dele!
    – Aaaah! E isso quer dizer o quê?
    – Eu pesquisei esse número e vi que é o Doutor Álvaro Boa Morte. Ele já teve problemas na justiça anteriormente.
    – Também, com um nome desses! Quem vai confiar num médico que se dá o nome de "Boa Morte"?
    – "Boa Morte" é um sobrenome real. Tem origem portuguesa.
    – Sério? Caraca, que família é essa? Devem ser a inspiração da Família Addams.
    – Olha, detetive, concentra aqui! Esse médico tem problema com a justiça por falsificação de atestados.
    Opa! Quer dizer que o documento tem chance de ser falso? Isso me mostrou um novo caminho para continuar a investigação.
    – Bom saber! Eu vou dar um jeito de falar com esse médico. Onde ele atende?
    – Numa clínica no centro da cidade. Mas eles não devem ser muito receptivos com detetives particulares ou policiais.
    – Ah, não se preocupe, doutor Maurício! Eu sou um mestre dos disfarces.
    O doutor Maurício ficou um pouco em silêncio e respondeu depois.
    – Olha, talvez seja melhor eu ir junto.
    Ai, que saco! Acho melhor tentar convencê-lo do contrário:
    – Doutor Maurício, não que eu tenha algo contra você, mas eu não gosto de trabalhar com advogados do lado.
    – Não se preocupa que eu não vou te atrapalhar.
    Ele já disse isso antes. Enfim, agora eu tenho uma nova pista e isso me deu um ânimo. Vamos ver se esse médico ainda está bom em falsificação. A visita não vai ser do jeito que eu queria, mas é melhor do que nada.
    Continua...
  • Jerry Bocchio e os Ratos na Padaria – Capítulo IV: Um Antigo Aliado

    O advogado Maurício Porteau e eu estávamos conversando no meu escritório para bolar um plano. Nossa intenção é ir até o consultório do Doutor Álvaro Boa Morte (que ninguém vai me convencer que é um nome bom pra ser médico) e ver se ele ainda está nessa de emitir atestados e laudos falsos para pacientes.
    Só pra contextualizar caso você pegou o bonde andando: o Doutor Álvaro Boa Morte é o médico que assinou o laudo do exame que detectou pêlos de rato na comida servida pela Padaria Nova Caledônia que um cliente ingeriu. Esse laudo está sendo utilizado como prova num processo por esse mesmo cliente contra a padaria. O problema é que esse médico tem histórico na justiça por fraudar atestados.
    O problema do nosso plano é: como convencer um suposto médico fraudulento a dar um atestado falso pra um detetive e um advogado? Eu tenho a resposta na ponta da língua: disfarces! Mas, parece que o advogado não é muito fã desse tipo de abordagem. Eu disse que não gosto de trabalhar com advogados por perto.
    Enfim, estava lá o advogado tentando me explicar porque eu deveria evitar disfarces:
    – Detetive, isso daria munição para eles. Eles vão dizer que o médico foi levado a erro e criou provas contra si mesmo.
    – Ah, que saco! Tudo é isso agora? O que o senhor sugere, então?
    – Precisamos encontrar alguém que ele tenha dado um atestado ou um laudo falso recentemente e convencer essa pessoa a testemunhar.
    – Rapaz, você fez faculdade pra isso? Primeiro, pra saber quem foi consultar com esse médico, tem que pegar os registros da clínica, o problema é que a área da saúde não é muito fã de liberar documentos dos pacientes; Segundo, se alguém pediu um documento fraudado, você acha que estaria nos registros da clínica? O cara já foi pego uma vez, gato escamado tem medo de água fria...
    – Escaldado!
    – Como?
    – O certo é: "gato escaldado tem medo de água fria", não "escamado".
    – Aaaah! Bem que eu achava que esse ditado não fazia sentido! Afinal, peixe tem escamas e gosta de água fria, né? Por que um gato escamado não iria gostar? Beleza, deixa eu corrigir no meu caderno aqui.
    – Mas essa relação também não... Ah, deixa pra lá! Você ia continuar, detetive?
    – Ah, é mesmo! E terceiro, você acha mesmo que alguém com um documento fraudado ia mesmo aceitar depor em um tribunal? "Oh, esse médico me deu um atestado falso pra eu faltar no trabalho". Isso é crime! Ninguém ia aceitar isso.
    O advogado Maurício começou a andar em círculos pelo escritório com os braços pra trás e a cabeça baixa, com ar pensativo. Foi quando ele falou:
    – Detetive, sua ideia também tem falhas. Se, ao menos, fosse uma operação da Polícia, o médico poderia ser pego em flagrante.
    – Quer dizer que precisa envolver a Polícia nisso?
    – Sim, pelo menos teríamos uma denuncia oficial. Só que eu não acho que a Polícia ia atrás de um médico somente com uma suspeita.
    Nesse momento, me veio à mente chamar o meu amigo Tom, investigador da Polícia. Nós éramos parceiros quando eu ainda trabalhava lá. Eu só peguei minhas coisas e disse para o advogado:
    – Vamos dar um pulo na delegacia.
    E assim nós fomos até a delegacia. Tom continuou sendo meu amigo mesmo depois de eu sair da Polícia. Nós costumamos ir até a Padaria Nova Caledônia no fim do expediente, quando não temos que ficar até um pouco mais tarde em nossas investigações, claro. Como ele também gosta de lá e conhece todo mundo, acho que ele vai querer nos ajudar. Só espero que ele não esteja ocupado com algo muito sério.
    Chegando na delegacia, eu fui direto na mesa do Tom:
    – E aí, Tom?
    – Fala, Jerry! Tá fazendo o que por aqui?
    – Eu queria saber se você tem disponibilidade pra me ajudar em um caso.
    – Um caso? Você diz um caso seu? Sobre o que é?
    – Eu comecei a investigar o fechamento da Padaria Nova Caledônia. Eu descobri que ela foi sabotada.
    – A Padaria Nova Caledônia foi sabotada? Bem que eu achei essa história estranha mesmo. Mas, se você já descobriu, pra que precisa da minha ajuda?
    Após essa pergunta do Tom, só ouvi a voz do Capitão Lester Gregade, aparecendo de surpresa na conversa:
    – Tentando cooptar meus policiais, detetive Bocchio?
    – "Cooptar"? Mesmo depois que eu saí da corporação o senhor continua falando difícil comigo, Capitão? "Cooptar", "intransigente", "vaso sanitário"...
    – Escute bem, detetive Bocchio, o Mangalvo não é um contato particular seu da Polícia para te ajudar em casos de ligações clandestinas de luz ou traição.
    – Capitão, primeiro, faz tempo que eu não pego casos de traição, graças a Deus! Segundo, dessa vez é um caso de suspeita de fraude em perícia médica.
    – Ah, é? E com base em quê? Na sua intuição?
    Nessa hora, o advogado Maurício Porteau se envolveu na conversa:
    – Capitão Lester Gregade, eu sou o Doutor Maurício Porteau, tudo bem?
    – "Doutor"? O senhor é médico?
    Detalhe: o Capitão Gregade também não gosta muito de advogados, aliás, quase ninguém da delegacia gosta. A expressão no rosto do advogado era de quem estava engolindo um sapo.
    – Certo, entendi seu ponto! Enfim, eu também pensava a mesma coisa do detetive Jerry Bocchio. Pra mim, o caso já tinha se encerrado, enquanto pra ele, ainda parecia faltar explicações. Até que eu percebi que os laudos eram assinados por um médico que já tem histórico em fraudes.
    – O senhor fala do Álvaro Boa Morte?
    – Esse mesmo.
    O Capitão Gregade parou por uns instantes com os braços cruzados e olhando para baixo. Pelo visto, esse Álvaro Boa Morte tem histórico grande aqui. Também, um médico chamado "Boa Morte"! Não sei como ninguém suspeitou disso antes. O Capitão, depois de pensar, virou para o Tom e disse:
    – Mangalvo, a decisão é sua, mas se alguém der parte na Polícia, te mando pra corregedoria sem pestanejar, entendido?
    "Pestanejar"? Que porcaria é essa?
    Tom virou sua cadeira giratória em nossa direção, todo animado, mas controlando a empolgação:
    – É isso aí! Tom e Jerry de volta na área!
    – Você ainda não assistiu "Tom & Jerry", né Tom?
    – Não, mas isso não vem ao caso. Enfim, o que você precisa?
    Expliquei toda a situação para o Tom, que aceitou participar. Só que após o final do turno dele, pois se tratava de um caso que a Polícia não estava envolvida. Ele combinou comigo de nos encontrarmos na rua do lado da clínica. O advogado Maurício pediu para ir junto, disse que queria que o caso fosse o mais dentro da lei possível, já que o tal requerente era irredutível.
    Dito e feito, Maurício e eu fomos até a rua que Tom havia indicado. O carro do Tom já estava estacionado, nos esperando. Maurício estacionou seu carro atrás do de Tom. Descemos do carro de Maurício e fomos até Tom, que abriu as portas para entramos. Eu sentei no banco do carona e Maurício, no de trás. Tom nos cumprimentou e foi puxando alguns aparelhos de dentro de sua mochila, que estava no banco de trás. Então, Tom começou a falar seu plano:
    – É o seguinte, Jerry: eu preciso pegar o médico dando atestado falso no flagra para poder dar voz de prisão. Então eu preciso que você coloque esse ponto no ouvido e esse microfone de lapela. Ah, e deixe disfarçado o microfone.
    – Tá, mas e o ponto? Ele não vai perceber?
    Tom puxou uma jaqueta de moletom da mochila.
    – Coloca essa blusa aqui e põe o gorro por cima da orelha, beleza? Agora, você vai lá fingir que é um paciente dele, eu já marquei o horário. O nome que você vai usar é Jefferson de Santana. Fala que você quer um atestado pra, sei lá, inventa aí. Você é criativo com essas coisas.
    – Pode deixar, Tom. Aliás, essa blusa já me deu uma ideia.
    – É isso aí! O gato e o rato se unem pra pegar o cachorro!
    Eis que Maurício entra na conversa.
    – Quando você chama a vocês de "Tom e Jerry", você está fazendo uma referência ao desenho, policial?
    – É! Nós somos parceiros que nem o gato e o rato do desenho.
    – Na verdade, eles não são amigos, são inimigos. Eles ficam tentando matar um ao outro no desenho. Você nunca viu?
    Tom fica surpreso com a informação e fala para mim:
    – Caramba! Por que você nunca me avisou, Jerry?
    – É que eu não queria estragar sua empolgação hehehe. Mas eu falava pra você assistir o desenho.
    – Poxa! E pensar que eu baixei todos os episódios pra minha filha eu assistirmos quando ela for maiorzinha.
    – Você baixou o desenho todo e não assistiu nenhum episódio sequer?
    Maurício se mete na conversa de novo:
    – Não, pior! Você é policial e baixou conteúdo pirata da internet?
    Tom e eu nos olhamos após a pergunta de Maurício e, simplesmente, começamos a rir descontroladamente. Após me recuperar da crise de riso, coloquei os aparelhos, a blusa e um óculos escuros que eu tinha no bolso e saí do carro ainda falando "ai, ai". Esses advogados se acham espertos, mas são bem mais infantis que nós, detetives.
    Enfim, lá vou eu, mostrar mais uma vez meu brilhantismo para pegar um médico de araque.
    Continua...
  • Jerry Bocchio e os Ratos na Padaria – Capítulo VI: Os Astros Talvez Não Mintam, Mas...

    A situação estava ruim para o meu lado. Eu tinha acabado de ajudar a descobrir um esquema de especulação imobiliária daqueles bem safados e, por consequência, salvei a Padaria Nova Caledônia de fechar as portas. Mas, por algum motivo, a Vidente Solange, aquela lá do começo da história, que tinha falado para o Seu Rogério vender a padaria e depois me dito para não investigar o caso, do nada disse para todo o mundo que eu tenho "pacto com encostos".
    De onde essa mulher tirou essa ideia? Nem ela sabe dizer o que é um encosto quando perguntam isso pra ela. E por que ela resolveu falar isso de mim sendo que a pessoa que foi presa pelo esquema foi outra?
    Eu lembro que quando eu falei com Jorge Abílio, o corretor imobiliário preso, pela primeira vez na Padaria Nova Caledônia, ele havia me dito que era seguidor da Vidente Solange. Eu lembro também que, num acesso de raiva, eu havia dito que "o encosto sou eu". Será que isso teve influência?
    Eu fui fazendo essas ligações na minha cabeça. A Vidente Solange apareceu na padaria para incentivar o Seu Rogério a vendê-la depois da aparição do Jorge Abílio. Até aí é lógico, não teria como ela aparecer antes – essa conversa mole de vidente, paranormal e astros não me convence, viu?
    Depois ela veio ao meu escritório falando para eu não investigar a aparição dos ratos após uma conversa minha com o Jorge Abílio. De novo o Jorge Abílio precisou aparecer antes dela. Como ela sabia da minha pretensão de investigar? Será que Jorge Abílio tinha uma ligação com ela?
    Tem uma chance de aparecer um padrão aí. Mas só duas coincidências não fazer um padrão. Então, sentei em minha mesa e liguei para o Tom, enquanto mexia no computador:
    – Tom, me tira uma dúvida: a Polícia divulgou a prisão do Jorge Abílio para a imprensa?
    – Ainda não.
    – Nem tinha repórter?
    – Também não. Por que você tá perguntando isso? Tem a ver com o vídeo da Vidente Solange?
    – Você também viu, é?
    – A Maria segue ela nas redes sociais. Ela mostrou o vídeo pra mim. Você deve ter alugado um apartamento mesmo na cabeça dessa vidente, viu? A Maria disse que ela não postou os conselhos dela ontem à noite e chegou hoje falando justo sobre você.
    – Ontem à noite? Você diz na hora que a Polícia foi atrás do Jorge Abílio, né?
    – Mais ou menos por aí. Você ainda tá desconfiando dela, né?
    – Você nem imagina o quanto, Tom.
    Enquanto eu falava com Tom, eu ia procurando na internet alguma notícia sobre a prisão de Jorge Abílio. Sem resultado nenhum. Nem mesmo nas redes sociais dele tem alguma postagem do tipo. Então eu perguntei ao Seu Rogério, que ainda estava no meu escritório, vendo toda a situação:
    – Seu Rogério, ela fala alguma coisa mais sobre mim no vídeo?
    – Não, só isso mesmo.
    Isso ainda não provava minha teoria, que começava a tomar corpo.
    – Você sabe que horas começa o programa dela, Seu Rogério?
    – Umas três horas.
    Levantei e peguei minhas coisas correndo. Seu Rogério perguntou:
    – Onde você vai, J.B.?
    Eu, já chegando na porta, virei para ele e falei rapidamente:
    – Preciso consultar o meu futuro.
    Seu Rogério e eu saímos do meu escritório. Sem falar muito, me despedi dele e fui correndo até a rádio onde trabalha a Vidente Solange, a Rádio 88. Ela faz parte de um programa chamado "Tarde Astral", onde ela e um outro apresentador chamado Fernando ficam falando aquelas baboseiras todas.
    Cheguei na entrada para o estacionamento da Rádio 88. Havia uma cancela e uma guarita ao lado. Tentei passar pela cancela como quem não quer nada, mas o segurança logo saiu da guarita e gritou:
    – Parado aí, rapaz! Cadê a sua identificação?
    Eu precisava inventar algo rápido. Se eu falasse quem eu era, ele provavelmente não deixaria eu entrar.
    – Eu... Vim para uma entrevista de emprego.
    Porém, o segurança deu um sorriso malicioso e me respondeu:
    – Você não me engana não, viu? Você é aquele detetive Jerry Bocchio. Aqui você não é bem vindo. Dá o fora daqui, anda!
    Eu não sou bem vindo? Talvez aquela vidente não queira que eu apareça pra falar com ela mesmo.
    Pra evitar mais problemas, e porque o segurança já tinha chamado mais gente no rádio dele, eu decidi sair pra pensar em algum outro plano. O segurança ficou me olhando até eu virar a esquina mais próxima do estacionamento da rádio, saindo do campo de visão dele.
    Eu me sentei na calçada mesmo, ao lado de uma banca de jornal. Fiquei com a cabeça baixa, tentando pensar em algo, quando eu recebo uma mensagem no celular. Era o Tom falando para eu olhar para o outro lado da rua. Quando eu levantei a cabeça, vi o carro dele estacionado. Fiquei surpreso com o que vi. Então me levantei e fui até o carro.
    No carro estavam Tom, vestindo um uniforme da Padaria Nova Caledônia e o Seu Rogério. Tom destravou a porta de trás e disse pra eu entrar no carro. Entrei ainda chocado com a situação. Tom, antes que eu dissesse algo, virou para trás e resolveu falar:
    – Eu imaginei que você viria até aqui, Jerry. Bem a sua cara mesmo fazer esse tipo de coisa.
    – Tá, mas, por que você está aqui também? E vestido desse jeito? E trouxe o Seu Rogério junto?
    – Como eu disse, eu imaginei que você viria depois que nós conversamos pelo telefone, então, eu saí correndo da Delegacia para o seu escritório pra evitar de você fazer alguma besteira. Só que, quando eu cheguei lá, você tinha acabado de sair correndo. Aí eu vi o Seu Rogério, que estava lá, e nós conversamos.
    – Sei. E vocês vieram pra me convencer a não fazer isso. Mas não explica porque você está com o uniforme da padaria.
    Foi então que o Seu Rogério também virou para trás e interveio na conversa:
    – Aí é que você se engana, J.B.! A gente veio te ajudar a entrar.
    Tom continuou:
    – É, você deve ter ficado nervoso com a Vidente Solange, mesmo, Jerry. Até esqueceu de bolar um disfarce pra entrar.
    E o Seu Rogério finalizou:
    – Mas não se preocupa que a gente pensou nisso. Aí do seu lado tem uma sacola com uma camisa, um avental e uma redinha de cabelo da padaria. Se troca aí no banco de trás mesmo e a gente vai tentar passar pelo segurança.
    Ao terminarem de falar isso, os dois se viraram para a frente de novo. Eu vi a sacola do meu lado e comecei a pegar a roupa que estava dentro. Enquanto eu ia me trocando, eu perguntei:
    – Tom, você não vai se encrencar com o Capitão?
    Com um ar meio de confiança, meio de desprezo, Tom respondeu:
    – Humpf! Quando eu aparecer lá com a Vidente Solange algemada, ele vai esquecer tudinho.
    – Você tem tanta certeza assim que vai dar certo, Tom?
    – Digamos que eu já vi você fazendo isso antes, Jerry.
    Eu coloquei a roupa e Tom deu a partida no carro. Eu perguntei o plano e ele só disse "segue o fluxo". Uma coisa que nós costumávamos falar um ao outro quando éramos parceiros na Polícia.
    Chegamos à cancela do estacionamento da Rádio 88. O segurança saiu da guarita e veio em direção a nós. Tom abaixou apenas o vidro do lado dele. O segurança chegou até a janela de Tom e disse:
    – Identificação.
    – Nós somos do Delivery. A produção do programa "Tarde Astral" encomendou três sanduíches de metro, um bolo, uma torta holandesa e três refrigerantes.
    Caramba! Isso deve ter saído caro!
    O segurança tentou olhar para mim no banco de trás. Eu abaixei a cabeça fingindo mexer no celular pra tentar enganá-lo, com muito medo de não dar certo. Por sorte, a escuridão do carro e o Insulfilm nas janelas do carro de Tom conseguiram convencer o segurança. Ele pediu para Tom esperar e voltou para sua guarita. Depois de uns cinco minutos, ele voltou para falar com Tom:
    – Eles disseram que não encomendaram nada!
    Tom, atuando, virou para o Seu Rogério e disse:
    – Ih, rapaz! Será que a gente cometeu um erro chefe?
    – Que droga! Vamos ter que aplicar a política de entregas erradas da padaria.
    O segurança, curioso, perguntou:
    – Que raios de política é essa?
    Tom virou para ele e respondeu:
    – Quando a nossa padaria faz uma entrega errada, a pessoa tem direito de ficar com todo o produto de graça e sem pagar a taxa de entrega.
    – Vocês estão de brincadeira com a minha cara, é?
    – Não, seu guarda! É sério!
    – Deixa eu ver o porta malas!
    Tom saiu do carro e foi com ele ao porta malas. Pelo que eu ouvi da conversa, afinal eu não queria virar o rosto para o segurança não me identificar, o segurança conferiu e estava tudo lá, como Tom havia descrito.
    Nessa hora eu me emocionei. O Seu Rogério abriu mão de uma boa produção dele pra me ajudar a limpar meu nome. Olha, se eles não são meus amigos, eu não sei do que os chamar.
    Tom voltou para o carro e o segurança voltou para a guarita. Depois de mais uns cinco minutos, ele liberou a cancela. Quando Tom passou pela guarita, o segurança deu as coordenadas para ele e disse que uma pessoa da produção estaria nos esperando na porta de entrada.
    Dito e feito, quando Tom passou pela entrada, justamente o apresentador, Fernando, estava nos esperando. Tom e Seu Rogério desceram do carro e, quando eu ia descer, o Seu Rogério só olhou pela janela e disse:
    – Opa! Jaime, dá só a baixa no aplicativo antes de descer do carro, beleza?
    Pelo que eu entendi, esse Jaime era eu e era pra eu esperar mais um pouco antes de descer. Então, fiquei no carro e só ouvi a conversa:
    – Olá! Namastê! Eu sou o Fernando, apresentador do Tarde Astral, tudo bem?
    – Oi, eu sou o Rogério! Muito prazer! Minha filha acompanha muito o programa de vocês!
    – Ah, que ótimo! Bem que a Vidente Solange disse que iríamos ganhar um presente dos astros hoje. Olha como os astros não mentem, não é mesmo?
    Tom abriu o porta malas e simplesmente jogou as sacolas com os refrigerantes no peito do Fernando.
    – Meu Deus! Como sou descuidado! Você se machucou, senhor Fernando?
    – Ai! Não muito! Nada que um banho de sais com cúrcuma não resolva, não é? Hehehe!
    Seu Rogério apareceu na cena:
    – Poxa vida, Rubens! Pare de ser desastrado desse jeito!
    Bom, pelo visto, o Tom é o Rubens. Fernando, vendo a bronca encenada do Seu Rogério no Tom, digo... Rubens, interveio:
    – Senhor Rogério, não faça isso com ele, coitado! Isso atrai energias negativas. Temos que ter mais gratidão! Olha, eu sou grato por ele ter batido com essa sacola no meu peito porque é uma prova que eu tenho saúde pra aguentar pancadas.
    Pelo amor de Deus! Esse povo é muito, mas muito esquisito!
    Seu Rogério pediu desculpas, pegou as sacolas com os refrigerantes e a torta holandesa e perguntou se Fernando poderia levar para que ele pudesse levar o bolo. Fernando, mesmo depois da pancada no peito, aceitou. Os dois foram indo na frente. Aí sim, Tom me chamou para ajudar a levar as caixas de sanduíche de metro. Tom ficou na frente e eu fui seguindo ele, de cabeça baixa, só dando uma olhada para saber onde estávamos indo. O problema é que um dos sanduíches era de salame, e o cheiro estava me abrindo o apetite.
    Fernando, como é um sujeito super otimista, ficava apresentando todas as salas para nós no caminho. Mal sabia ele que a nossa intenção era a de questionar a Vidente Solange. Já pensou se um sequestrador aparecesse lá? Ele não teria nenhum trabalho... Bom, talvez com o segurança.
    Chegamos à sala onde deveríamos deixar a encomenda. Segundo Fernando, era a sala de som do programa. Haviam duas mulheres na sala que tinha uma mesa de som, uma janela que dava para um estúdio, um tripé com uma câmera apontada para a janela, provavelmente a câmera que grava os vídeos para a internet, e uma mesa redonda grande no centro. Infelizmente, a Vidente Solange não estava lá. Fernando foi apresentando as duas moças:
    – Gente, esse aqui é onde a gente trabalha quando não estamos no ar. Aquela ali é a Luna, nossa técnica de som. Fala oi para os nossos novos amigos, Luna!
    – Namastê!
    – E aquela é a Sol, nossa diretora. Oi, Sol!
    – Namastê!
    O que significa "namastê"?
    Tom me cutucou e apontou para o estúdio. A Vidente Solange estava lá, se maquiando. Eu precisava sair escondido, mas precisava de uma deixa. Foi quando a diretora, Sol, disse:
    – Por que vocês não ficam conosco um pouquinho para celebrar esse presente que os astros nos deram? Os mensageiros também precisam ser recompensados.
    Olha, é sério! Se alguém com más intenções quiser fazer algo com esse pessoal... Nem vou terminar a frase.
    Tom e eu colocamos os sanduíches de metro na mesa do centro. Aí Tom virou para os três e disse:
    – Uau! Uma mesa de som! Eu sempre quis ver uma de perto!
    Os três produtores levaram Tom e o Seu Rogério para mostrar a mesa de som completamente empolgados e eu fiquei lá, parado, sozinho na mesa do centro. Aí que eu me toquei: era a deixa! Saí de fininho da sala, não sem antes pegar um pedaço do sanduíche de salame, e fui em direção à porta do estúdio onde estava a Vidente Solange.
    Geralmente, eu levaria mais tempo para achar a porta correta, mas o tonto do Fernando foi apresentando tudo pra nós no caminho, né?
    Tirei aquela redinha do cabelo, o avental e abri a porta. Logo já fui ouvindo da Vidente Solange:
    – Ai, Fernando! Já disse que não é pra entrar enquanto eu estiver me maquiando! Isso atrai... Ora, Ora! Se não é o Jerry Bocó! Largou a carreira de detetive pra trabalhar na padaria, é? Hahahaha!
    Conforme eu fui entrando, eu fui falando:
    – Pensei que você seria mais grata, a exemplo dos seus colegas.
    – Pffff! Eu, hein? Aqueles otários!
    Após entrar, fechei a porta e continuei:
    – Por que "otários"? A senhora não compartilha das ideias deles?
    – Qual é? Sejamos francos! Você passou um tempo com eles, não foi? Cinco minutos já bastam pra ver como eles acreditam em maluquices!
    – Inclusive as que você fala?
    – Bom... Aí... Já são outros quinhentos, né? Tem coisa que a gente tem que falar pra agradar. Mas, enfim... Você está aqui porque quer limpar seu nome né? Esquece isso! Você me prejudicou, então eu acabo com a sua carreira!
    Opa, opa, opa! Como assim eu prejudiquei ela?
    – Eu te prejudiquei? Como? Por acaso a senhora teria ligação com o Jorge Abílio?
    – Não sei! Só sei que você disse que era um encosto. Agora vai pagar pelo que disse.
    Haha! Falou besteira!
    – É, de fato, eu disse isso! Mas eu disse isso para o Jorge Abílio, não para você. Como você sabia?
    – Eu sou uma vidente, esqueceu?
    – Ué, não foi você que acabou de dizer que isso era maluquice e que dizia essas coisas "pra agradar"?
    A Vidente Solange, que eu vou, a partir de agora, me recusar a chamá-la desse jeito, me dando o direito de chamar apenas de "Solange", se calou com uma feição de preocupação. Sabe de uma coisa? A certeza de impunidade faz as pessoas cometerem atos falhos com muita frequência.
    Solange voltou a sorrir maliciosamente e disse:
    – Ai, Jerry Bocó! Você quase me pegou nessa. Só tem um probleminha.
    – Qual?
    – Você não tem como provar nada disso! Jerry Bocó! Hahahaha!
    Yes! É isso aí! Rapaz, como eu amo quando um suspeito diz essa frase! "Você não tem como provar" é quase uma confissão!
    Durante o riso descontrolado de Solange, a voz de Tom apareceu no estúdio dizendo:
    – Gente, me perdoa! Eu sou muito desastrado! Eu apertei o botão que colocava o programa no ar sem querer e ele transmitiu toda essa conversa de vocês dois ao vivo!
    Solange mudou a feição dela de uma risada descontrolada para um medo embranquecedor, como um personagem de um filme de terror que acabou de encontrar o fantasma cara a cara. Deve ter sido rápido, mas eu vi tudo como se fosse em câmera lenta.
    Ao olharmos para a janela que dava para a sala de som, vimos Tom e o Seu Rogério nos olhando com um olhar de satisfação e os três produtores decepcionados. Foi então que Tom falou ao microfone de novo:
    – A propósito, Solange Maria Abraão, a senhora está presa!
    Fernando estava certo? Talvez. Afinal eles ganharam um presente bem grande, se livraram de uma charlatã. Pode até ser que os astros não mintam, mas as pessoas que dizem que os lêem, aí é outra história.
    Solange foi investigada pela Polícia pelo envolvimento com a especulação imobiliária de Jorge Abílio e descobriram mais do que isso. Solange era a dona da empresa que contratava Jorge Abílio e que, além dele, a empresa também mandava em vários outros corretores agindo do mesmo jeito pela cidade. Também descobriram lavagem de dinheiro e outros golpes que ela praticava se valendo das crenças das pessoas.
    O problema é que ainda existem pessoas que acreditam na palavra dessa mulher. Mesmo presa, mesmo com tanta coisa saindo na mídia. Não são mais tantas quanto antes, mas ainda existem.
    O Doutor Álvaro Boa Morte perdeu de vez a licença dele para praticar medicina. Porém, ele agora tem um canal no YouTube dando dicas sobre saúde. E o pior é que o nome dele foi o que chamou a atenção do público para o canal: "Boa Morte pra Você". Esse povo da internet também é bem esquisito.
    Quanto ao Seu Rogério e a Padaria Nova Caledônia, eles reabriram. Seu Rogério perdoou Zé Maria por ele ter colocado os ratos e prometeu não ficar fazendo tantas brincadeiras mais com ele. A Renatinha, depois do ocorrido, largou de mão da Vidente Solange. Na festa de reinauguração, eu conversei com o Seu Rogério:
    – Seu Rogério, muito obrigado pela ajuda. Você abriu mão de uma boa parte do seu estoque pra me ajudar.
    – Não, J.B.! Eu tava com a padaria fechada. Eu comprei quase tudo aquilo. Só os refrigerantes que eu tinha.
    – Aaaah! Mesmo assim! Deve ter sido caro.
    – Que isso, J.B.! Aquilo foi pouco ainda! Você me ajudou a recuperar a padaria, rapaz! E tem mais! Meu filho tinha um escritório num prédio comercial perto de onde você trabalha. É um escritório bem maior do que o seu. Eu ia alugar ele, mas eu deixo você ficar lá, só precisa pagar o condomínio e as despesas. O valor fica quase o mesmo do que você paga atualmente.
    – Que isso, Seu Rogério! Eu não preciso de escritório maior não!
    – Ué, e quando você tiver seu ajudante? Seu escritório fica pequeno!
    – Mas eu não tenho condições de pagar ajudante.
    – Ah, J.B.! Do jeito que você é bom, daqui a pouco vai precisar contratar um. Hehehe.
    Esse Seu Rogério tem uma confiança em mim que até eu mesmo me espanto. Bom, espero que ele tenha poderes sensitivos, né?
  • Kidnapped - Sequestrada.

    POV'S Alessa Katherine Kendrick.
        - Se alguém tem algo contra este casamento, fale agora ou cale-se para sempre. - Disse o padre.
       - Amiga é agora! - indagou Courtney que estava sentada ao meu lado. E ao lado dela estavam Hanna e Babi. Éramos as damas de honra, e que honra. Sorri com meu pensamento.
        Olhei do outro lado e em outro banco estavam sentados os meninos que iriam nos ajudar. Meninos que estudaram conosco. Os olhei e pisquei.
       Um deles se levantou e veio até mim. Estendeu sua mão e eu segurei na mesma. Me pus de pé e estalei os dedos, como se fosse um sinal. Logo uma música começou a tocar. Uma música romântica. O que fez todos olharem maravilhados achando que aquilo faria parte do casamento. Meu pai olhou sorrindo achando que aquela era uma surpresa que eu havia preparado para seu grande dia. E realmente era!
       Logo a música ficou mais sensual. Soltei meus cabelos. Agora sim o jogo começou.
       Eu me movimentava conforme a música, subia e descia de costas para Daniel, o garoto que estava dançando comigo. Passei minha perna em volta de seu quadril e o mesmo segurou ela ali, fazendo com que meu vestido subisse mostrando parte de minha bunda. Pude ouvir vários murmúrios o que me fez sorrir.
        - Alessa! - advertiu meu pai.
        - Sim Papai? - o olhei com cara de desentendida.
        - Sente-se imediatamente! - disse mais vermelho que o normal.
        - Garota mimada! - retrucou a vadia petulante do altar.
        - Claro. - disse e realmente me sentei. Mas em cima do colo de Daniel, logo após deita-lo no chão. Comecei a rebolar e Daniel começou a se soltar, não pelo plano, mas sim porque o mesmo estava ficando excitado de verdade.
       Me levantei e fiquei em prontidão, logo as outras garotas se encontravam do meu lado. Ficamos paradas, imóveis, os outros garotos se levantaram e nos rodearam. Agora tocava “Love Me” de Lil Wayne. Os garotos continuavam a nos rodear. Eles colocaram as mãos nas nossas nucas e puxaram os fios amarrados do vestido, fazendo os mesmos caírem ao chão revelando nossas lingeries vermelhas idênticas e totalmente provocante. Caminhamos até os meninos que estavam parados uns do lado dos outros. Nos abaixamos em perfeita sincronia e puxamos as calças dos mesmos revelando as cuecas box idênticas, também na cor vermelha, logo puxamos o smoking e revelou seus peitorais muito bem definidos e com a gravata borboleta no pescoço. Podíamos ouvir vários "Óhh" das senhoras sentadas tapando os olhos de seus maridos. Logo começou a tocar “Side To Side” da Ariana Grande. Começamos a fazer a coreografia com os meninos. Havia as senhorinhas que nos encaravam e não sabiam o que fazer, umas até foram embora passando mal. Pude até ouvir uma delas dizer: “Barbaridade, no meu tempo não existia esse tipo de coisa”.
        Nos deitamos no chão e os meninos se deitaram por cima, se esfregando em nós, invertemos as posições e ficamos por cima, rebolando o mais que conseguíamos ou pensávamos estar sensual, sem parecer um bando de virjonas, tentando ser vadias só para estragar o casamento do pai.
       Com a música logo no final, olhei para o altar e a vadia tentava acudir meu pai que estava muito vermelho, a mesma abanava o rosto dele com um envelope. O padre estava estático.
       Peguei o vinho que eu deixei preparado na taça onde eu estava sentada e caminhei até ela, beberiquei o mesmo e ela já podia imaginar o que eu ia fazer.
        - Se você ousar... - joguei todo o líquido na cara dela, manchando todo seu vestido.
        - Ah... sua... insolente! – reclamou, passando as mãos pelo vestido branco, desesperada.
       A igreja se pôs de pé, comentando minha audácia, alguns jovens na flor da idade, com os hormônios à flor da pele, nos aplaudiam e assobiavam. Já os mais velhos estavam indignados, provavelmente achando que eu era uma filha ingrata e mal criada.
       Ouço o grito da vadia e olho para trás e vejo meu pai caído no chão. Droga! Isso não estava nos planos.
        - Aí, Alessa, fodeu vem! - disse Hanna me puxando para a saída.
       Saímos correndo e descemos as grandes escadas da igreja, todos da rua nos olhavam, por conta de nossas lingeries. Um garoto que estava de bicicleta, deu de cara no poste após prender sua atenção em nós.
        Nós, meninas, corremos para meu carro que era um Audi R8, que acabara de ganhar do meu pai de presente antecipado de aniversário. Iria fazer 18 anos daqui quinze dias e os meninos entraram no Porsche de Daniel logo atrás de nós.
        - Mano, isso não estava nos planos. - Comentou Babi.
        - É o meu pai. Preciso voltar! - disse com lágrimas nos olhos.
        - Aí Kath, deixa de ser dondoca! Ele apenas desmaiou. Se voltarmos agora, vai ferrar para todas nós! Conseguimos o que queríamos, agora é só esperar. O casamento não aconteceu.
        - Está certa! Está certa! Está certa! - dizia tentando confirmar a mim mesma.
        Parei em frente a uma praça.
        Logo quebramos o silêncio constrangedor com nossos risos escandalosos.
         - Meu, vocês viram a cara da vadia quando você jogou o vinho na cara dela?! - dizia Courtney nos fazendo rir ainda mais.
         - Aí, Alessa - chamou Babi -, depois dessa acho que seu pai vai te deserdar. - rimos de novo.
         - A essa altura nem me importo com grana. Sem contar que ele me deixou disponível na minha conta 5 milhões de dólares, mas eu só posso mexer daqui 15 dias quando fizer 18 anos. Além do mais, tem a fortuna da minha mãe que diferente daquela vadia, ela não se escorava em meu pai. É uma mulher independente! - disse orgulhosa.
         - Realmente. A tia é mó fodona. Admiro muito ela. Ainda mais os vestidos que ela faz. - disse Hanna se lembrando do vestido lindo de 15 anos que minha mãe havia dado de presente à ela a três anos atrás.
         Fomos para minha casa e já estávamos vestidas novamente com os sobretudo que havíamos levado de reserva no carro.
         Abri a porta de casa e adentramos a mesma.
        - Mas já estão de volta meninas? - disse minha mãe alegre. Quem olhasse para ela jamais diria que a mesma fora traída e abandonada pelo marido. Minha mãe era uma mulher que eu admirava muito, não demonstrava fraqueza, mas eu sabia que a noite ela chorava por falta de meu pai.
        - Mãe, foi maravilhoso! - sorri largamente pra ela.
        - É tia, fizemos tudo direitinho! - disse a bocão da Babi.
        - O... O que? - disse direcionando seu olhar para mim - Alessa! O que você aprontou? - disse autoritária.
        - Então... Sabe o que é mãe... - disse olhando feio para Babi - Bom...
        - Bom?... - disse me incentivando a continuar.
        - Ah mãe, qual é! Você aceitou esse casamento, mas eu não! E estou em todo meu direito de fazer um show e acabar com tudo. Não é só por você, é por mim, pelo papai e pela família que tínhamos e ele nem se quer levou isso em consideração. Não adianta nada ele depositar milhões de dólares na minha conta, me presentear com um Audi R8, me visitar e me tratar como princesa se no final do dia, ele vai voltar para aquela vadia, vai jantar com ela, se deitar com ela e acordar com ela! Pronto para construir uma família nova e eu vou estar pronta para me considerar órfã de pai se isso acontecer! - disse transbordando raiva.
         - Ah filha... - ela sorriu e me abraçou - puxou meu temperamento. Me conta todos os detalhes, derrubou vinho no vestido dela? Isso não pode faltar em nenhum lugar!
         - Sim mãe, joguei bem na cara dela! Olha como ficamos na igreja... - disse abrindo o sobretudo e revelando a lingerie vermelha. A mesma arregalou os olhos e soltou um gritinho histérico, logo nos puxando para o sofá e nos fazendo contar cada detalhe.
  • LENTES

    Os olhos
    São lentes
    Diferentes...

    Olhares diferentes
    Penetrantes...

    Olhares das mentes
    Mentes revolucionárias
    Combatentes...

    Mentes insurgentes
    Mentes que mantém
    Lentes midiáticas.

    Mentes democratas
    Mercados, pomadas
    Lentes felinas.

    Universo das mentes.

    Linces...

    Lentes,
    Mentes mirabolantes
    Que através das lentes.

    Mentem...

    Fazem guerras
    Em nome de Deus!

    Lentes...

    Que filmam as mortes
    Retratadas como coisas
    Penetram quando vida.

    O prenúncio das mortes
    Mentes das lentes.

    Mentem...
    Mentem...
    Mentem...

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