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Embate Decisivo

Sentia um imenso vazio. Nada parecia fazer sentido. Não via razão em nada. Como se de repente a vida fosse desnecessária. 
Com trinta e poucos anos de idade eu já me sentia uma velha. Sem motivação, sem metas, sem objetivos.
Desde criança eu me sentia excluída, eu sentia que estava no lugar errado. Vivia em uma família sombria. 
E eu queria brilhar. 
Mas aprendi a ser sombra, a ser silêncio, a ser solidão.
Cresci sendo a menina boazinha e que não dava trabalho nem problemas. Fazia sempre tudo que queriam. Aprendi a engolir sapos e humilhações sem reclamar. Aprendi a guardar tudo dentro de mim. 
Quando doía muito, algumas lágrimas serviam pra consolar, um papel e uma caneta serviam pra desabafar. 
Mas não demonstrava e ninguém percebia que estava doendo.
Fiz sempre tudo que esperavam de mim. Cresci, estudei, trabalhei, ajudei a todos. 
Tudo vinha antes do meu bem estar. 
Bem cedo eu tive sucesso profissional. Eu precisava mostrar meu valor e minha capacidade. Ninguém parecia acreditar nisto. Então era preciso provar.
Namorei, noivei e casei bem ao estilo da família tradicional. 
 
Mas ninguém sabia que dentro de mim pulsavam sonhos muito diferentes. 
E a mulher boazinha sufocou seus sonhos porque não podia dar desgostos e nem causar problemas.
E minhas metas e desejos gritavam alto e eu sufoquei aqueles gritos porque uma boa mulher tem que seguir as normas, uma mulher perfeita tem que seguir o curso que a vida determina.
Meus talentos e dons clamavam e me feriam a carne dia a dia procurando uma saída. Mas uma mulher inteligente e sensata não abandona uma carreira profissional por um salto no escuro.
E então todos estes lamentos se transformaram em depressão. Mas uma mulher perfeita não se curva à depressão. Isto é para os fracos.
Um remedinho qualquer e a mulher que tem que se enquadrar nas normas e voltar à sua vida de mulher forte.
Mas tudo que se estica demais uma hora arrebenta. 
 
E eu estava ali. Sozinha. Tudo já estava planejado. Como uma mulher que nunca falha, eu estudei tudo muito bem. Medi, cronometrei, pesquisei quanto tempo seria a agonia. Estava tudo ali: a corda, o banco, a porta aberta pra não causar dificuldade a ninguém. Seria rápido. Sem muita dor ou agonia. Viver não valia a pena, a vida é totalmente inútil. Aquele vazio, aquela dor de não ser estava se tornando insuportável.  Viver estava se tornando um fardo pesado demais pra mim. Eu não conseguia mais conviver com meus conflitos. Aqueles conflitos que eu travava com meus sonhos, com meus desejos e metas, com meus talentos e dons estavam tornando minha vida impossível de ser vivida. Aquele casamento infeliz e insosso estava insuportável.
Todos iriam saber que aquela mulher perfeita e forte não existia. Ela era apenas uma criação deles. E eu não mais permitiria que eles comandassem  minha vida como se eu fosse marionete. 
Do mesmo modo que vivi calada, morreria calada. Nem um bilhete seria deixado. Queria que eles sofressem toda a extensão da dor que me causaram.
Era chegada a hora da minha libertação. Nunca mais seria escrava de ninguém.
Subi no banco, passei por meu pescoço a corda com o nó muito bem elaborado para que não se soltasse. Fiz uma oração e fechei meus olhos pronta para pular do banco.
Neste momento ouvi uma voz.
Abri os olhos e vi uma mulher idosa. Ela estava de mãos dadas com uma criança Ela perguntou:
-Por que você pretende fazer isso comigo?
-Quem é você?
-Não me reconhece?
-Quem é você e por que vem se meter em minha vida? E quem é essa criança?
-Você não tem o direito de fazer isso comigo. Eu quero viver. Eu quero ser feliz. Quero continuar realizando meus sonhos, minhas metas, meus desejos, quero amar, viver plenamente.
-E o que eu tenho com isso?
-Você está tão cega pelo seu egoísmo que não me reconhece, não é? Pois desça já daí e trate de mudar sua vida. Eu não nasci pra ser vítima, essa criança não nasceu pra ser boazinha e você não nasceu pra obedecer ordens e seguir as convenções.
Eu olhei demoradamente pra ela e para aquela criança. E eu me vi nelas.
Tirei a corda do meu pescoço, desci do banco e me postei diante delas:
-O que vocês querem de mim?
-Que você aprenda a viver. Que você comece a tomar as rédeas da sua vida e cumprir seu destino. Pare de se fazer de vítima, pare de querer ser perfeita. Você não é melhor nem pior que ninguém. Você é só você mesma com sua vida pra viver. Não precisa ficar fazendo o que todos querem. Seja apenas você mesma. Eu e esta criança não queremos morrer e você não tem o direito de fazer isso conosco.
-A vida é minha. Eu faço dela o que quiser.
-A vida é nossa também. Eu quero poder ser quem sou.
-E quem você é?
-Uma mulher bem resolvida, uma mulher feliz e de sucesso.
-Sucesso? Que sucesso? Ter um bom emprego que lhe garante a sobrevivência e alguns luxos é ter sucesso?
-Olhe ali. Bem ali na frente. 
Eu olhei e vi várias tela pintadas. Eram lindas. O traço era exatamente o meu. Aquele que eu algumas vezes me dei ao luxo de esboçar em algumas poucas telas que o tempo me permitiu criar.
-O que significa isso?
-Não reconhece o traço? Não reconhece a sutileza do toque final?
Eu chorei. Chorei todas as lágrimas que eu retive durante toda a minha vida. Tentava me aproximar das telas para vê-las de perto e tocá-las. Mas não me era permitido. Todas aquelas telas estavam dentro de mim, prontas para virem ao mundo. Olhava e reconhecia cada uma delas. E eu chorava. 
-Pare de chorar. Chorar não vai fazer as coisas acontecerem. O que você precisa é atitude. 
-E como vou ter atitude se nunca tive?
-Não consegue? Deixe de ser teimosa e se fazer de vítima e procure ajuda profissional. O que não pode é você se achar no direito de mudar o destino. O futuro nos espera e eu quero chegar lá com todo o meu sucesso. Eu nasci pra brilhar e para criar, para mostrar minha arte ao mundo. Você não vai me impedir. Desfaça já esta cena de teatro de quinta  categoria que você armou. Pensa que vai fazer alguém sofrer se você tirar sua vida? A vida segue e você é que vai interromper a nossa história.
-Eu não tenho mais forças pra prosseguir.
-Pois procure forças. Vá lá e mude sua vida.
-Você me ajuda?
-Eu sou você. Pra eu existir, pra eu ser quem sou é você que precisa seguir em frente. Você tem sua criança pra lhe ajudar. Você é inteligente. Use sua inteligência, siga seu coração, ouça sua alma.
Neste momento eu acordei. Estava caída no chão. Senti que acordei de um transe ou de um desmaio. 
Recordei o embate que travei comigo mesma. 
Olhei toda aquela parafernália armada ali.
Eu me levantei. Envergonhada por minha fraqueza desfiz tudo. 
Decidi que por mais que doesse e que fosse difícil eu iria viver e mudar. 
Os dias passavam e eu não conseguia cumprir minha decisão. Estava começando a me sentir enfraquecida novamente.
E um dia eu acordei decidida. Procurei ajuda profissional com um psicólogo. Busquei ajuda espiritual. Fui me fortalecendo. 
Terminei meu casamento e me senti livre.
Eu me transferi de cidade e deixei de ouvir as pessoas que só buscavam me colocar pra baixo e me depreciar.
Eu me matriculei em um curso de artes. 
Dividia meu tempo entre meu trabalho e a arte.
Comecei a criar e me sentir viva, intensa. 
Com o tempo fui mudando radicalmente a minha vida. 
A cada passo rumo a liberdade eu sentia um grande prazer se apoderar de minha alma, de meu coração. 
Ninguém mais me dominaria nesta vida.
A cada tela terminada eu pensava na senhora que me impediu de cometer o suicídio.
Eu nasci pra brilhar e vou chegar ao sucesso. De mãos dadas com o meu passado e o meu futuro…

 

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Atualizado em: Seg 28 Mar 2022

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