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O Maldito Clichê

 
O centro da cidade foi abandonado pelos ricos, que preferiram viver nos cômodos e protegidos condomínios construídos nos bairros mais afastados. As ruas encheram-se de prostituas, traficantes, drogados, vagabundos: os indesejados tão importantes para o bom funcionamento de uma metrópole. Em pouco menos de cinco anos a decadência se alastrava pelo lugar como se fosse uma erva daninha. Os pequenos e grandes prédios da região foram ocupados por assalariados que cultivavam certa inclinação artística. Em um desses prédios em ruínas, aqueles que têm parte de sua estrutura à mostra, como que exibindo suas entranhas, vivia O Poeta, funcionário do Banco do Brasil e aspirante a... poeta. O Poeta vivia no primeiro andar, seu apartamento era reflexo de sua mente privilegiadíssima: pouquíssima mobília e as paredes nuas, exceto por duas gravuras coladas na porta do banheiro:  Kandinsky e a Mona Lisa. “ Kandinsky traz a incoerência que reside no interior do homem pós-moderno, Mona Lisa é a precisão dos traços, harmonia das formas, invocação do mundo organizado que provém da mente do arquiteto supremo...”, explicava O Poeta, alquimista das palavras, sacerdote das artes, conhecedor do belo, diante da atenta plateia de baratas que viviam em sua cozinha sempre imunda.  
À noite, Melpômene, musa grega de seios gigantescos, visitava-o em seus aposentos, e os dois faziam amor até que o dia amanhecesse. Quando despertava, tinha as cuecas emporcalhadas de sêmen e a mente cheia de inspirações. Sentava-se e escrevia os mais belos versos já vistos: 

“Ó, mulher divina! 
Tua bela bunda 
Meu coração ilumina 
Ó, mulher...tens bela bunda 
Pena ser tão corcunda...” 

Terminados os versos dotados de magnânima vesnutidade, dedicava-se a seu outro trabalho, reescrever Os Lusíadas. Emprestaria um pouco de seu gênio para transformar aquela porcaria em algo de valor. 
No primeiro dia da primavera, deu-se conta de que as flores que desabrochavam eram fatalmente desprovidas de quaisquer encantos, “o mundo precisa da verdadeira beleza e não esse lixo!”. Com sua visão poetizadora, revelaria o verdadeiro belo, o romântico, para a humanidade, que, grata aO Poeta, prestar-lhe-ia infindas honrarias.  Movido por razões tão honestas, decidiu-se por encerrar-se em seu apartamento, onde escreveria sua Magnum Opus.  
Escreveu algumas centenas de sonetos, outros milhares de versos brancos, porém, quando já estava na quinquagésima estrofe de sua dignificante empreitada, ocorreu-lhe o que tanto temia: Um maldito Clichê atacou-o de surpresa, e o Poeta, acossado por tão vil criatura, deu no pé. Na fuga desesperada, acabou por tropeçar numa sextilha, bateu com a cabeça na quina de um vocativo e morreu. Uma morte original, digna de tão ilustre Poeta ... 
*** 
Ora, como ousas dizer que O Poeta morreu? O Poeta vive, sim, sempre que uma vírgula for mal empregada, uma frase for ambígua, um personagem superficial e um texto incoerente, saibam todos....sim...sempre que esses atentados ao bom gosto existirem, lá estará presente – vivo! -  o espírito do nosso faustoso Poeta! 
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Atualizado em: Ter 23 Jun 2020

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